sexta-feira, 25 de julho de 2014

Reunião de Condomínio

Dr. Leopoldo, médico aposentado e exemplar chefe de família, tinha muito orgulho de ocupar o posto de sindico do edifício em que morava há mais de trinta anos. Foi um dos primeiros moradores, tendo sempre feito questão de estar ciente de todas as questões do condomínio e nos últimos dez anos, com intuito de preencher o tempo após ter se aposentado, resolveu se candidatar a sindico tendo sido eleito por unanimidade seguidamente.
Dr. Leopoldo vivia sozinho em um amplo apartamento de quatro quartos na Tijuca, que fez questão de conservar, por mais que seus três filhos tivessem insistido para ele vender e se mudar para um menor, quando ficou viúvo, mas ele dizia que seria bom manter o apartamento grande para quando os filhos viessem lhe visitar com os netos e noras, o que só acontecia no Natal e raramente no dia dos pais e mesmo assim para seu pesar, embora nunca demonstrasse qualquer tipo de insatisfação, nunca dormiam por lá. Depois de alguns anos, os filhos desistiram de tentar fazer com que o pai se mudasse.
As atividades de sindico preenchiam o tempo daquele homem solitário e ainda cheio de energia. Estava sempre à frente de tudo que se passava no prédio, havia conseguido reduzir as contas do condomínio, resolvia qualquer problema a qualquer hora do dia ou da noite, os moradores nunca estiveram tão satisfeitos com um sindico e ele se sentia realizado em suas funções. Tudo corria muito bem até que um novo morador chegou e começou a fazer uma obra interminável causando alguns transtornos.
As reclamações começaram pelo vizinho do apartamento 901 que teve seu quarto inundado por um vazamento da obra do andar de cima. Se isso já era um problema, mais grave ainda ficou pelo fato ter ocorrido às três horas da madrugada não tendo o morador hesitado em bater a porta do sindico em busca de uma solução. - Dr. Leopoldo... Desculpe-me pela hora, mas como pode ver temos um problema, o senhor tem que vir comigo agora... Dizia o morador apontando para si mesmo efusivamente. O sindico que ainda tremia pelo susto de ter sido acordado no meio da madrugada, não entendeu bem o que aquele homem de pijama e completamente molhado fazia em pé a sua porta tentando lhe convencer a ir com ele sabia-se lá pra onde. -Mas o que há de tão grave? O que foi que houve? Habílio, o morador do apartamento 901, não deu chance ao sindico de recuar e o agarrou pelo braço e praticamente o arrastou até seu apartamento, dizendo que ele tinha que ver com sues próprios olhos o que estava acontecendo. Ao chegarem, a água já estava por todo o apartamento, mas já tinha parado de vazar pelo teto do quarto e finalmente o sindico pode entender o desespero do morador que lhe informou que acordou com um jato de água sobre ele e que antes de ter ido acordá-lo tentou por várias vezes, mas sem sucesso, contato com o vizinho de cima. –Estou indo lá agora ver o que se passa... Dr. Leopoldo partiu em direção ao apartamento 1001 seguido pelo Sr. Habílio. Pensou por um momento que não deveria devido à hora, mas não tinha outra solução tinha que tocar a campainha, blim blom... - Boa noite, a que devo a honra da visita? Querem entrar? O morador do apartamento 1001 atendeu a porta, enrolado em uma toalha, comendo um enorme sanduiche e nem parecia que estava no meio da madrugada, dado a naturalidade com que recebeu seus visitantes. O sindico pediu desculpas e explicou o que estava acontecendo e que precisava de autorização para verificar se havia algum problema com a obra que pudesse ter causado o vazamento. Nicolau, era o nome do morador do apartamento 1001, olhou por cima do ombro do sindico e deu de cara com Habílio de pijamas ainda molhado e imaginou que deveria ser seu vizinho de baixo e caiu na gargalhada, - Hahahaha..., nossa eu te acordei? Desculpe... Pelo visto não deu muito certo. Habílio que já estava com os nervos à flor da pele e sem entender qual era a graça, quase partiu para cima do vizinho com um belo soco se não fosse o sindico ter intervindo. – Tá rindo do que? Não tem graça nenhuma... Nicolau percebeu sua inconveniência, pediu desculpas e os convidou para entrarem para que pudessem ver do que estava falando e os o dois o seguiram até o banheiro. – Como os senhores podem ver, eu fiz uma pequena obra. Mudei alguns cômodos de lugar... troquei o banheiro com o quarto, à sala com a cozinha... E agora estava acabando de testar o banheiro, com meu primeiro banho e ia começar a testar minha cozinha nova. Querem um cafezinho?... O sindico perplexo, olhava para Nicolau que estava na maior calma do mundo e o interrompeu bruscamente, deixando de lado sua calma e cordialidade de sempre. - Não se atreva a abrir mais nenhuma torneira desse apartamento ou terei que tomar medidas legais contra o senhor. Vamos esperar amanhecer o dia para ver o que vamos fazer para consertar os estragos causados por essa sua obra desastrosa... Nicolau passou da aparente tranquilidade para a hostilidade e foi partindo para cima do sindico e do vizinho do andar de baixo os colocando para fora do apartamento. – Escuta aqui o Sr. Sindico, na minha casa mando eu entendeu?  O Sr. manda é no prédio, no meu apartamento não! Ninguém vai entrar aqui para dizer o que eu tenho ou não que fazer com minha obra, que está um espetáculo... E quer saber do que mais? Vou continuar testando todas as torneiras, que por sinal são lindas e me custaram uma fortuna. Dr. Leopoldo e Habílio ficaram estupefatos do lado de fora sentindo o trepidar da porta batida com violência. – E agora Dr. Leopoldo, o Sr. Não vai fazer nada? Esse louco vai destruir meu apartamento e os dos andares de baixo também se continuar a jorrar essa água toda em limites... O morador do apartamento 901 estava aos berros no corredor e o sindico tentou acalmá-lo antes que acordasse todo o prédio, dizendo que fosse para casa que providências imediatas seriam tomadas e assim Habílio foi para seu apartamento, embora contrariado e desconfiado, cuidar de secar toda aquela água.
Antes das sete horas da manhã o interfone do sindico começou a tocar, o que ele já esperava que fosse acontecer. – Bom dia, Dr. Leopoldo, é o Valdemar..., era o porteiro da manhã, - Dr. tem um monte de morador aqui na portaria reclamando que não tem água no prédio... Eu disse a eles que o Sr. Mandou fechar, devido a um probleminha, mas eles querem saber quando é que vai abrir. Eu já não sei mais o que fazer, cada hora chega mais um aqui... O sindico respirou fundo e pediu ao porteiro para avisar que ele já ia descer. – Calma minha gente que o Dr. já está descendo aí...
- Bom dia senhores, parece que temos um contratempo... Os moradores estavam enfurecidos e se pudessem tinham voado no pescoço do sindico. - Contratempo? O Sr. Chama isso de contratempo? Tenho que trabalhar e não pude nem escovar os dentes... Não tem água nos banheiros, na cozinha...  Como o Sr. fecha tudo dessa maneira sem avisar? D. Marlene moradora do apartamento 201 era uma das mais exaltadas e por mais que o marido, Sr. Ernesto, tentasse fazê-la se acalmar e escutar as explicações do sindico não adiantava ela continuava a gritar. Dr. Leopoldo, parecendo refeito do susto da madrugada e de posse de sua calma e cordialidade de sempre, esperou que a senhora em questão acabasse com seu desabafo e explicou o que estava acontecendo e disse que não lhe restou outra opção a não ser fechar a água até que se encontrasse uma solução. Agora foi a vez do morador do apartamento 505, Sr. Romeu, perder a calma. – Quer dizer que vamos ter que ficar esperando até quando? Temos que ter uma solução imediata... Não podemos ficar sem água? Pronto o caos estava instalado e em menos de meia hora praticamente todos os moradores tinham descido, a maioria para reclamar e alguns para ver do que se tratava toda aquela confusão. Dr. Leopoldo tentava em vão acalmar a todos, usando o argumento que estava a caminho um profissional para acertar os estragos e que ele iria conversar com o dono da obra para que o mesmo permitisse a entrada no apartamento. No meio de toda aquela confusão adentra pela portaria, o morador do apartamento 1001, o dono da fatídica obra.     – Bom dia senhores... O que está havendo por aqui? É alguma reunião de condomínio?  Não me lembro de ter recebido nenhuma convocação.  Todos pararam de falar e se voltaram para ele que por sua vez parecia bem tranquilo não se dando conta do problema ali discutido e continuou com seu interrogatório descabido. – Sr. sindico, o Sr. vai me desculpar, mas aqui na portaria não é lugar para se fazer uma reunião... Dr. Leopoldo perdeu a paciência e se pós na frente de Nicolau e já ia armar uma resposta quando os moradores quase que em coro disseram que seria providencial fazer uma reunião de condomínio e exigindo que o síndico começasse de imediato. – Mas qual é o assunto tão urgente assim que não pode esperar? Perguntava Nicolau com sua irreverência irritante. – A sua bendita obra!!! Esbravejaram os moradores enlouquecidos. O sindico se viu em uma situação difícil e não tendo outra opção sugeriu que todos se encaminhassem ao salão de festa do prédio para uma reunião de emergência. – Bem senhores... Estamos aqui reunidos para tratar de um assunto de grande urgência para todos e tentar conseguir uma solução de imediato, como se faz necessário. E mais uma vez Nicolau, parecendo minimizar a questão, interrompeu o discurso do sindico e se pós a falar. –Queridos vizinhos não vejo porque tanto tumulto em relação a minha magnífica obra... Se vocês me derem cinco minutos, posso explicar tudo como foi feito e o que é preciso fazer para acertar esse pequeno probleminha e depois se quiserem abro meu palácio para visitação e aposto que muitos de vocês vão até querer me contratar para reformular seus apartamentos. Agora foi a vez do sindico interromper e quase gritando pedir para que Nicolau se sentasse e deixasse que a reunião continuasse, argumentando que o que ele estava propondo era um completo absurdo. Porém os condóminos levantaram quase de uma só vez e aclamaram para que Nicolau continuasse com suas explicações e o sindico não teve outra saída a não ser conceder a palavra ao morador que continuou sua oratória, agora mais fortalecido. –Bem senhores, minha obra é uma arte da arquitetura... Tudo bem... Reconheço que causei alguns problemas, mas que são fáceis de serem solucionados. É só concertar os canos da coluna do prédio, que foram acidentalmente furados... O morador do apartamento 901 deu um grito de pura ira dizendo que Nicolau estava sendo irônico e não estava dando a devida importância ao assunto, mais foi quase que agredido pelas mulheres que queriam escutar tudo sobre a tão fantástica obra de Nicolau. E ele continuou falando por mais uma meia hora, dizendo que as inovações valiam a pena o transtorno causado e ofereceu a quem quisesse ver seu apartamento para verificar de perto as belezas que foram feitas. Debaixo de muitos protestos dos maridos que queriam providências imediatas para resolver a questão da impossibilidade de ligar a água do prédio, as mulheres partiram em retiradas seguindo Nicolau para verem seu apartamento e ficaram encantadas com as modificações, esquecendo do problema que estavam enfrentando com a falta da água. Após uns quarenta minutos, voltaram na maior animação, todas querendo copiar as modificações feitas, pelo agora ídolo das moradoras, ilustríssimo Sr. Nicolau. Ao chegarem ao salão, os homens estavam em polvorosa, discutindo com o sindico que não sabia mais o que fazer para acalmá-los.  – A obra está fantástica, o Sr. Nicolau é mesmo um inovador! Fugiu a todos os padrões... Vou querer fazer igual lá em casa... A moradora do apartamento 801 foi a primeira a entrar no salão mostrando seu encantamento com o que viu e logo teve seu discurso apoiado pelas demais mulheres. –Mas isso é um absurdo... Esbravejou um dos maridos inconformado com a mulher. – Você está maluca? Não vou fazer obra nenhuma, quero resolver o problema da água que não pode ser ligada por causa do estrago feito por esse inconsequente. Todos os homens o seguiram, mas foram abafados pelas mulheres que estavam sendo lideradas por Nicolau que pediu a palavra, que foi dada tendo em vista o entusiasmo das mulheres que lhe apoiavam, ficando os maridos sem ter outra opção a não ser deixá-lo falar. –Senhores, como podem ver as senhoras adoraram minhas inovações. Os estragos podem perfeitamente serem resolvidos como já coloquei e tudo ficará bem... Agora foi a vez do sindico de manifestar, - E quem vai arcar com o custo? As coisas não são tão simples assim como o Sr. quer fazer parecer... Nicolau tomou de assalto a palavra antes que os demais pudessem ter a oportunidade de se colocar do lado do sindico. – O condomínio naturalmente... Foi um alvoroço e quase saiu tapa se não fosse a moradora do apartamento 701 se colocar na frente de Nicolau para defendê-lo das agressões. – O deixem acabar de falar e vão ver que só temos a ganhar, por favor, senhores. Muito a contragosto, os homens se sentaram e escutaram o discurso de Nicolau que falou por cerca de duas horas, sobre as vantagens que teriam se fizessem as modificações nos apartamentos, que os imóveis seriam valorizados e que o custo com o conserto na coluna do prédio seria amplamente compensado. No final metade da platéia parecia convencida, não só pelas explicações de Nicolau, mas também pelas mulheres que estavam enlouquecidas pela possibilidade de fazer o que julgavam iria modernizar os apartamentos. Porém, o síndico que havia deixado praticamente a reunião seguir por conta própria, se levantou e tomou a palavra, o que não foi fácil dado a confusão instalada no recinto. – Senhores, senhores... Por favor, um minuto, acho que como síndico, tenho o direito a palavra. Todos calaram e se colocaram prontos para ouvir. – O que está sendo falado aqui é um verdadeiro despropósito... Essas modificações implicam em mudança da estrutura do prédio, colocando em risco a própria segurança dos senhores... Como sindico não posso admitir que isso vá para frente... Foi um alvoroço só, as mulheres gritaram, pularam, puxavam os maridos pelo braço para que falassem alguma coisa e por fim, estavam com Nicolau suspenso no alto aclamando para que o síndico fosse deposto e que ele fosse eleito em seu lugar. O síndico tentou acalmá-las pedindo a ajuda dos maridos, mas não teve jeito, foi destituído do cargo e Nicolau assumiu de imediato e sua primeira medida foi cobrar uma alta taxa de condomínio para fazer as obras de reparo da coluna e em seguida implantou uma taxa de consultoria de obra para quem quisesse suas orientações para efetuar as loucas alterações nos apartamentos, medida que foi seguida por quase todos os moradores, pelo menos os casados, tendo em vista que foi impossível conter a euforia das mulheres que os atormentavam sem parar até que decidissem a pagar a tal taxa.
Dr. Leopoldo ficou por alguns meses morando no prédio, mas não suportou a tristeza de ter sido tirado de seu tão amado cargo de síndico e ainda por cima ter que aturar os desmandos de Nicolau e resolveu seguir enfim os apelos dos filhos e vendeu seu apartamento. A venda foi feita para o vizinho do lado que atendendo aos apelos da mulher, que estava sob as orientações da consultoria de Nicolau, iria juntar os apartamentos e fazer um jardim de margaridas.

Dr. Leopoldo foi morar em um pequeno apartamento de quarto e sala em Copacabana, mas todo o dia a tarde ia dar uma volta pela Tijuca e visitar sua antiga moradia de tantos anos e em uma dessas tardes ao chegar à frente do prédio quase morrer de susto, pois o mesmo havia desabado em virtude das obras malucas de Nicolau. O prédio estava cercado por Bombeiros e pelos moradores que tentavam entender o que aconteceu e quando viram o antigo síndico ali parado olhando os escombros, só faltaram lhe atirar pedras dizendo que havia sido praga dele por despeito. O coitado teve que sair correndo antes que fosse atingindo pela fúria dos moradores e no caminho topou com Nicolau com a planta do prédio aberta no chão e se perguntando o que havia dado errado. Dr. Leopoldo se abaixou olhou nos olhos de Nicolau e lhe perguntou com a mesma ironia de sempre usada por ele, - Você quer que eu te diga o que deu errado Sr. Nicolau? E no aceno positivo de Nicolau, Dr. Leopoldo lhe respondeu, - Não ter lhe dado isso antes. E lhe acertou um soco no meio do nariz o deixando caído no chão e seguiu enfrente e nunca mais voltou por ali ou soube notícias de quem quer que fosse.

Perdida no viaduto do Fidelis

Zuleica acordou animada para o aniversário de 50 anos de Adelino, mas ainda não tinha certeza se poderia ir. Pois o lugar da festa era distante e tinha medo de voltar sozinha e não tinha conseguido nenhuma carona.

Adelino era o funcionário mais querido da repartição, todos gostavam dele e estariam presentes na festa e Zuleica, como os demais, fazia questão de ir e depois de muito pensar resolveu se vestir e seguir rumo à comemoração. – Não é possível que não tenha alguém lá que não vá vir aqui para os meus lados... Ou eu chamo um taxi... Ah sei lá, quando chegar lá eu vejo, o que não posso é deixar de ir ao aniversário do Adelino. E saiu pela porta cantarolando e fechando os brincos.

Ao chegar à festa Zuleica estava preocupada, pois pode ver que realmente era muito longe de sua casa e em um lugar de difícil a acesso. Para ir foi tranquilo, ainda estava de dia, mas estava apreensiva pela volta. A primeira coisa que fez, depois de cumprimentar o aniversariante, foi tentar achar alguém que fosse passar perto de sua casa na volta para que ela pudesse pegar uma carona, mas não encontrou. Gonçalves, um também colega de trabalho, vendo sua aflição se aproximou: - Zuleica não se preocupe, trate de aproveitar a festa. Pode deixar que eu te levo no viaduto do Fidelis, que é aqui perto, que tem um ponto de taxi que roda a noite toda. Fique tranquila. Zuleica agradeceu, mas não ficou a vontade com a oferta. – Obrigada, mas aonde é esse viaduto do Fidelis? Eu não conheço nada por aqui. Não sei não... posso me perder. É melhor eu ficar só um pouquinho e ir embora enquanto ainda está cedo. O motorista de taxi que me trouxe me disse que aqui a noite é muito difícil de conseguir um taxi, que até para chamar um é complicado tendo em vista que não tem sinal de celular. Gonçalves insistiu dizendo, que conhecia bem aquela região, que era para ela não se preocupar que se fosse preciso ele mesmo a levaria ou a colocaria num taxi e acabou por convencer Zuleica que caiu na festa sem mais pensar na volta para casa.


Zuleica estava se divertindo muito e achou ótimo ter concordado em ficar, mas lá pela meia noite procurou por Gonçalves para pedir que ele então a levasse no tal viaduto do Fidelis para que pudesse pegar um taxi e ir para casa. – Gonçalves... Já está tarde, acho melhor eu ir. Você poderia me levar no ponto de taxi? Gonçalves que já tinha bebido além da conta não queria saber de sair da festa. – Ah Zuleica! Por favor... Ainda tá muito cedo para ir embora. Já falei para você não se preocupar. Vou beber mais um pouquinho e já, já te levo, ok? Zuleica ficou meio contrariada, mas voltou para junto dos demais amigos e ficou esperando. Mas estava aflita e não conseguiu mais ficar a vontade, olhava o relógio de minuto a minuto e observava Gonçalves com receio de que ele fosse embora e esquecesse-se dela.

Finalmente às duas horas da manhã, quando já não havia quase mais ninguém no salão, foi que Gonçalves se decidiu a levar Zuleica. – Pronto Zuleica, é aqui. É só você andar até ali na frente que tem taxi à beça, dá até para escolher. Olha Zu... se eu não tivesse bebido um pouco além da conta eu mesmo te levava, mas acho que não dá,não... Gonçalves estava que não se aquentava e mesmo que quisesse levar Zuleica ela não teria aceitado. Mas o problema não era só esse, o local onde Gonçalves a estava deixando não tinha nenhum taxi a vista. E apesar de ser iluminado e até com certo movimento de pessoas circulando, era totalmente desconhecido para Zuleica, que mesmo assustada resolveu ir em frente e tentar chegar a casa o mais breve possível. – Tudo bem Gonçalves, pode deixar que eu me viro. Mas só me diz onde é que eu pego esse bendito taxi que não estou vendo nenhum por aqui. Gonçalves fez sinal com o braço na direção de um viaduto e deu um breve aceno de mão e saiu cambaleando de tão bêbedo que estava. Zuleica seguiu a indicação e quando chegou mais próximo pode ver uma placa pendurada em uma pilastra: “Viaduto do Fidelis”, e pensou aliviada que estava no local certo de pegar um taxi, conforme seu colega de trabalho havia lhe orientado. Mas olhou de todos os lados e nada de taxi e ninguém sabia informar onde conseguir um. O movimento de pessoas foi diminuindo e ela começou a ficar com medo. - Ai meu Deus que furada eu me meti. Aonde é esse tal ponto de taxi que o Gonçalves falou? Ah... só se for do outro lado... E subiu o viaduto, mas não conseguiu encontrar. Não passava nem taxi, nem ônibus, somente um carro ou outro, particular, que dava uma meia trava para olhar aquela mulher, parecendo perdida, no meio da rua o que só aumentava o medo de Zuleica que apertava o passo e os carros seguiam adiante. Pensou então em ver o celular para tentar ligar para pedir ajuda a alguém, mas sua tentativa foi em vão, o telefone além de estar completamente sem sinal, à bateria estava nas últimas e começou a ficar desesperada. Zuleica voltou para o viaduto e andava de uma extremidade a outra xingando Gonçalves e se mal dizendo por ter ficado até tão tarde na festa. - Ai aquele miserável do Gonçalves! Ele me paga! E eu sou mesmo uma estúpida, uma burra! Como é que vou sair daqui agora? Vou acabar tendo que ir a pé para casa! E o pior é que não faço a menor ideia para que lado ir. Ai!  Resolveu parar e tentar mais uma vez fazer com que seu celular pegasse quando foi surpreendida por um senhor, alto e de certa idade lhe cumprimentando o que quase a matou de susto. – Oi, boa noite moça. O que faz por aqui a essas horas? Já é muito tarde para uma mulher ficar sozinha na rua. Posso lhe ajudar em alguma coisa? Zuleica que estava de cabeça baixa mexendo no telefone deu um grito e um pulo para trás achando estar vendo um fantasma, pois o homem estava todo de branco, fumava um cachimbo e ela podia jurar que ele surgiu do nada, pois tinha certeza de que não tinha ninguém ali e não viu de onde ele saiu. Mal conseguia falar de tanto medo, mas arriscou: - Quem é você e de onde saiu? O senhor a olhou de cima em baixo, deu uma longa baforada em seu cachimbo e respondeu: - Eu sou o Fidelis, ora! Quem mais haveria de ser? E você é a Zuleica, não? Acho que já está na hora de voltar para casa. Vamos até lá em casa tomar um café que depois te levo. Zuleica estava tão surpresa que até esqueceu-se do medo e se aproximou: - Como assim, o Fidelis? Isso é alguma piada por acaso? E como sabe o meu nome? Foi aquele ordinário do Gonçalves que mandou você aqui para me assustar, não foi? Pois pode dizer a ele... O senhor a interrompeu a pegando pelo braço e os dois foram andando lentamente pelo viaduto. – Não é nada disso, se bem que você realmente não devia confiar em qualquer um, ainda mais em quem bebe demais como esse seu amigo. Eu conheço todos que passam pela minha casa, afinal moro aqui e tenho que tomar conta. Sabia que você viria me visitar. Zuleica não estava entendendo nada, mas estava curiosa em relação àquela figura surgida do nada. – O senhor mora aqui? Mas aonde? E como sabia que eu viria? Eu não vim visitar o senhor não, eu quero e ir para casa. O senhor sabe aonde posso pegar um taxi?

Os dois seguiram conversando até sumirem na poeira levantada por um enorme caminhão que atravessou o viaduto, o qual nem foi notado por Zuleica que não parava de questionar seu acompanhante.


Zuleica acordou tarde, porém cansada o que atribuiu à festa de aniversário que fora na noite anterior. Sentia a cabeça pesada e confusa com lembranças que achava ser de um longo sonho conflituoso que tivera. Estava em sua casa, na sua cama e ao virar para o lado deparou-se com um cachimbo sobre sua mesinha de cabeceira e deu um grito de puro susto e pavor. Cobriu-se até a cabeça dizendo para si mesma que precisava dormir mais um pouco e que devia ter bebido alguma coisa na festa que não lhe fez bem.

O VELORIO

Era um domingo chuvoso, triste mesmo. Podia-se dizer tratar de um dia perfeito para um velório.
Eugenia passou a noite acordada ao lado do corpo do marido morto que estava sendo velado na sala de jantar. Ela estava inconsolável e não atendeu de jeito nenhum aos inúmeros pedidos de amigos e parentes para ir descansar e retornar ao posto pela manhã.
A viúva fez questão que o velório fosse realizado em casa. Queria até que o corpo ficasse na cama, mas desta vez acabou por concordar com os argumentos de sua irmã mais velha e aceitou coloca-lo na mesa da sala de jantar.

Eugenia e o marido tinham uma boa situação financeira, viviam bem. Porém sem luxo, mais por causa dela que não gostava de ostentar, dizia que não precisava de muito para viver, que o básico e a companhia do marido lhe bastavam para ser feliz, só não esperava ficar viúva de forma tão repentina. Guilhermino, o marido morto, não pensava da mesma forma, gostava de gastar com o que tinha vontade, o que fazia escondido da mulher que vivia a lhe controlar os gastos, e foi em uma de suas extravagâncias que o coração veio a lhe faltar. Ele era um homem forte de seus cinquenta e poucos anos, aparentava ter uma saúde de ferro e tinha horror a médico, não ia nem amarrado. Nunca pisou em um hospital, nem para nascer e para morrer. Nasceu pelos braços de uma parteira na casa da avó materna e morreu na mesa do bar do Sr. Leopoldo, de infarto fulminante, no meio da comemoração pela vitória do campeonato de futebol do seu time de coração, ocasião em que estava custeando a bebida de todos do bar, o que fazia sempre que achava que tinha um bom motivo para celebrar. O médico ainda foi chamado às pressas, mas quando chegou não havia mais nada para fazer, já estava morto. Só restando aos companheiros, de bebedeira, levarem o corpo para casa e entrega-lo a viúva, que não entendeu como Guilhermino havia morrido em uma situação daquelas e passou a culpar os amigos pelo o ocorrido. Pois para ela o marido jamais ficaria na mesa de um bar bebendo até morrer se não fosse pela influencia de más companhias. E se não bastasse o fato da morte e as circunstância em que ocorreu, o que já teria sido o suficiente para desequilibrar Eugenia por completo, ainda teve o golpe dado pelo o dono do bar, Sr. Leopoldo, que não teve a menor sensibilidade e lhe entregou a conta da farra para que ela pagasse tendo em vista que o falecido assumiu a despesa antes de partir desta para melhor.   – Mas Sr. Leopoldo, o senhor deve estar enganado, o meu Guilhermino nunca teria assumido pagar por uma coisa assim... Ainda mais nesse valor exorbitante. Ele era um homem comedido. Não saía por aí torrando dinheiro. Sr. Leopoldo não era dado a gentilezas e não quis saber da dor da viúva e muito menos de sua dificuldade em se deparar com uma face do marido que ela, até então, desconhecia e não arredou pé. – O D. Eugenia... eu não quero saber de nada. O que eu não posso é ficar no prejuízo. Afinal de contas se seu marido morreu as dívidas dele agora são suas! Então, por favor, trate de me pagar que eu preciso voltar para fechar o bar e vir para o velório do meu amigo. A pobre da viúva vendo que seus argumentos de nada iriam adiantar, mesmo sem estar convencida da legitimidade da dívida e achando se tratar de algum equivoco do dono do bar, resolveu pagar e ir providenciar as coisas para o velório de seu amado marido. – Aqui está seu dinheiro Sr. Leopoldo. Agora se o senhor me der licença... Ela nem acabou de falar e o dono do bar já tinha, praticamente, puxado o dinheiro, conferido e saído em retirada.

Voltando ao velório...
Eugenia estava inconformada com a morte de Guilhermino e mais ainda pela maneira como ocorreu. Não acreditara na historia contata pelos amigos que trouxeram o corpo para casa, de que o marido estava bebendo com eles no bar desde cedo e que havia passado mal após ter ficado completamente bêbado. “Não é possível... ele não bebia assim”. Pensava fazendo força para se convencer que tudo aquilo era um forte e terrível engano. Mas seus pensamentos seguiam a lhe atormentar. “Se bem que eu troquei as roupas dele e o cheiro era de pura cachaça... Não, não... quer ver que alguém derramou pinga em cima dele e agora querem denegrir sua imagem, só pode ser... E essa história da conta que o Sr. Leopoldo veio me cobrar? Só pode ser algum engano, alguém que está se aproveitando da morte do meu Guilhermino para empurrar a divida para ele. Mas assim que acabar o enterro vou tirar isso a limpo, a se vou”. A pobre viúva estava atordoada pelos acontecimentos, mas seguia firme apegada a imagem de bom homem que tinha do marido, ou pelo menos fazia força para manter.

 O dia mal tinha raiado e a casa já estava cheia de amigos e vizinhos que não paravam de chegar. Eugenia teve dificuldades para fazer com que fossem embora no dia anterior, pois todos queriam ter passado a noite velando o corpo. Mas ela não permitiu, queria ficar sozinha com o marido em sua ultima noite em casa, mesmo que morto. Mas no dia seguinte, não teve jeito, a casa já amanheceu com gente na porta, o que causou certa surpresa a viúva, que não esperava um velório tão cheio. “Que estranho... não sabia que Guilhermino tinha tantos amigos assim...” Pensava Eugenia a cada desconhecido que chegava para lhe cumprimentar. Pois só conhecia os poucos parentes presentes e os amigos da igreja, que não eram muitos. A maioria ela não fazia a menor ideia de quem seriam e qual a ligação que tinham com o falecido, o que parecia ser muito próxima, dado ao estado de tristeza de todos. Mas o que mais lhe causou espanto foi quando começou a prestar atenção em uma conversa entre dois sujeitos, ditos amigos do defunto, sobre como eles iriam fazer para realizarem os churrascos de domingo sem o tão valoroso patrocínio do morto, que ele realmente iria fazer muita falta às tardes de celebração do bar do Sr. Leopoldo. E seguiu a prestar atenção às conversas dos inúmeros homens ali presentes, intitulados amigos de seu marido, que ela não conhecia. Todos estavam lamentando não a perda do amigo, mas sim o prejuízo que sua morte iria causar na organização das farras dominicais. A viúva não parava de pensar que tudo aquilo que estavam falando de seu marido não fazia o menor sentido. “Mas o que é isso?... Parece que todo mundo agora resolveu inventar histórias sobre o Guilhermino... E logo sobre esse assunto, não pode ser. Ele era um homem tão comedido, não era dado a gastos com futilidades. Bebida então nem pensar, vê se pode. Ele era um homem tão religioso, ia todo domingo a igreja, fazia suas orações... Festas no bar... Nunca! Ele ia sim naquele bendito bar do Sr. Leopoldo, mas só para ver o futebol. Só isso”.  Mas mesmo sem acreditar, seguiu de canto em canto procurando conversar com um e com outro e escutar as conversas que eram sempre sobre o mesmo assunto: - Que falta vai fazer o patrocínio do Guilhermino para as nossas farrinhas... Era a voz corrente nos quatro cantos do velório entre os “amigos” do morto.

Se Eugenia já estava estarrecida com as histórias, as quais fazia força para não acreditar, de gastos de dinheiro do marido com bebidas e festas para os amigos, mais desorientada ficou com a chegada de uma mulher que entrou sem falar com ninguém e foi direto se encostar à beira do caixão e a chorar tão alto que silenciou o falatório do salão. A viúva foi amparada por uma vizinha que já estava a observar a situação e correu para ajuda-la. – Mas o que é isso? Quem é essa agora? Isso foi a gota d´água! Como se já não bastasse toda essa gente, que eu não conheço, não sei de onde saiu e estão a chorar pelo meu marido como se fossem mais intimas dele do que eu, agora essa mulher! Eugenia estava começando a perder o controle e a vizinha, por nome Matilde, tentava em vão lhe acalmar. – Calma Eugenia, quer ver é da igreja... E veio orar por Guilhermino... Calma.  Os argumentos da vizinha não foram suficientes para amansar os nervos de Eugenia. – Como da igreja, se nunca a vi por lá? E com esse vestido, tão curto que dá para ver até a alma! Vou lá agora saber quem ela é! A vizinha mais uma vez tentou tranquilizar a viúva, mas não teve jeito, ela foi até a mulher tomar satisfação do porque chorava daquela forma exagerada pela morte de seu marido e o resultado não poderia ter sido pior. – Com licença, você pode me dizer quem é você e o porquê de tanto choro pela morte do meu marido? A mulher tinha cabelos loiros na altura dos ombros, uns vinte e poucos anos, corpo perfeito e olhar angelical, todos no velório a observavam e agora mais ainda para ver qual seria a resposta que ira dar a pobre viúva. Os amigos do bar, que sabiam o verdadeiro envolvimento da moça com Guilhermino, se entre olharam e se aproximaram procurando amenizar a situação, mas só serviu para piorar ainda mais o humor de Eugenia.  Paulo Aufredo foi o primeiro a tentar, se intrometendo na conversa antes que a tal mulher tivesse tempo de responder. - D. Eugenia, eu sinto tanto... tanto!... A senhora deve ter sofrido um grande golpe com a perda de nosso Guilhermino... Eugenia não deu a menor atenção e praticamente o empurrou para que saísse de sua frente e fez o mesmo com João e Batista que foram os próximos a se arriscarem e voltou a inquirir a mulher que a observava com olhar cheio de tristeza. – Então minha filha você pode me dizer... Mas antes de Eugenia completar a pergunta a criatura a sua frente caiu em um pranto e se jogou em cima do caixão como que querendo abraçá-lo e começou a gritar: - Perdi meu Guiguizinho!... Meu amorzinho!... Deixe-me ao menos chorar por ele! Eugenia não conversou, puxou a mulher pelo braço e a fez ficar de frente para ela e por mais que os amigos do bar tentassem impedi-la, dizendo que a tal mulher não passava de uma simples conhecida, não adiantou, Eugenia estava enfurecida e disposta a tudo para saber quem era aquela sujeita.   – Que história é essa de Guiguizinho? Quem é você afinal de contas?! E que diabos está fazendo no enterro do meu marido?! Ela perguntou e a mulher, até então desconhecida, não economizou na explicação: - Eu sou a Virginia. A Virgininha como o meu Guiguizinho gostava de me chamar... Ai que saudades... E você?... Ah... você deve ser a mulher dele, não é? Ele falava de você... Eugenia partiu para cima da tal da Virgininha a segurando pelos braços e sacudindo com força querendo saber exatamente o que o marido falava dela e qual era o verdadeiro relacionamento que os dois mantinham. Os amigos mais uma vez tentaram amenizar, mas não tiveram como, as duas começaram a discutir e ambas se jogaram em cima do caixão reivindicando a posse do defunto. O fuzuê estava formado, as mulheres estavam enfurecidas, não deram a menor atenção aos pedidos de calma e só pararam quando adentrou pela porta uma figura no mínimo inusitada gritando e querendo saber do morto, ao qual chamava de Guizão. Era um homem. No entanto, se não fosse pelo saliente gomo de adão e pela voz grave, podia-se dizer que era uma mulher extravagante. Pois tinha longos cabelos castanhos presos no alto da cabeça em forma de coque, usava um vestido até os pés de seda preta com bordados em prata, luvas de renda também pretas e sandálias e bolsa na cor roxa. Os olhos estavam perfeitamente maquiados com uma sombra cintilante prateada e enormes cílios postiços e a boca com um batom vermelho cor de sangue. Complementando o traje um monumental leque roxo, no mesmo tão das sandálias e bolsa, o qual abanava sem parar enquanto se aproximava do caixão e chorando se jogou por cima dele ignorando as duas mulheres que pararam a discussão e ficaram paralisadas observando o mais novo integrante do velório. Eugenia e Virginia se entreolharam, quase com cumplicidade, e perguntaram ao mesmo tempo: - Mas quem é esse agora? E que história é essa de Guizão? Como não houve resposta, as mulheres empurraram o tal homem vestido de mulher de cima do caixão e o indagaram enraivecidas querendo saber quem ele era. Por um momento estavam unidas em prol de saber o que estava acontecendo. – Eu sou a Afrodite! E vocês quem são? E que trajes são esses? Assim sem brilho, sem nada... Não acham que deveriam ter escolhido uma roupa melhor para vir aqui prestar a ultima homenagem ao meu Guizão? Que falta de respeito! Foi Eugenia que tomou a frente da conversa: - Olha aqui o D. Afrodite ou senhor sei lá quem você seja! Eu sou a esposa do Guilhermino! E o que eu quero saber é o que você era do meu marido e o que faz aqui no enterro dele?! Eugenia estava aos berros e até teria se esquecido de Virginia se não fosse por sua intromissão na conversa se intitulando a namorada do defunto, o que não pareceu afetar a mulher de Guilhermino que estava com todas as energias voltadas para saber se suas suspeitas, que a essa altura eram compartilhadas pelos demais participantes do velório, sobre a ligação de Afrodite com seu marido seriam confirmadas. Afrodite olhou para Eugenia com carinho e estendeu a mão em cumprimento, não sendo correspondida, mas em relação à Virginia mostrou espanto e descontentamento:    - Ah... muito prazer! Então você é a Eugenia, ele sempre falava de você. Mas dessa aí não! Nunca me falou nada de namorada. Virginia ficou histérica e quis tirar satisfações dizendo que era sim namorada de Guilhermino, mas foi logo interrompida por Eugenia que aos gritos a mandou calar a boca o que ela obedeceu sem questionar.  Eugenia então voltou a encarar Afrodite: - Afinal de contas quem é você e de onde conhece meu marido? A resposta, apesar de ter sido em de acordo com o que todos já haviam pensado, dado ao andamento da situação, causou um enorme alvoroço no salão. - Eu sou a noiva dele ora. Nós íamos nos casar... Mas Guizão dizia que não podia por sua causa, que ele não tinha coragem de te deixar, que precisava de mais algum tempo... Aí eu fui deixando, deixando... Até que no mês passado resolvemos ficar noivos. Ele até pediu minha mão para mamãe. Ele ia te contar tudo, mas não deu tempo... Desta vez Eugenia não suportou e desmaiou sendo amparada pelos amigos do bar que estavam de boca aberta com a revelação. – Nossa desta vez o Guilhermino surpreendeu mesmo!  Comentou Aurélio, um dos amigos e frequentadores do bar do Sr. Leopoldo. Foi uma confusão só, a viúva desmaiada no meio da sala, Virginia gritando sem parar que ela era sim a namorada do morto e que não acreditava que seu Guiguizinho era noivo de um homem e Afrodite cercada pelos amigos que queriam saber detalhes de sua relação com Guilhermino tendo em vista que ninguém sabia de sua existência.


E no meio de toda aquela confusão chegou o Sr. Clodoaldo, representante da funerária, para levar o corpo para realização do enterro e foi ai que se danou tudo mesmo. Pois quando ele começou a fechar o caixão para enfim levá-lo, a viúva, ou pelo menos a dita oficial, que já havia acordado de seu súbito desmaio correu para impedi-lo, dizendo que queria que o corpo fosse tirado do caixão e enterrado em uma cova rasa no chão, feito um indigente, que aquele homem que estava ali morto não era o marido que ela sempre conheceu e amou e que não ia pagar para enterrar um estranho. Virginia, a namorada, mais uma vez começou a gritar, dizendo que o morto é que tinha razão quando falava que a mulher era uma mão de vaca pão dura, que não deixava ele se divertir controlando tudo que ele gastava e até na hora da morte do coitado ela queria economizar. E as duas começaram a travar o maior bate boca, cada uma puxando o caixão de um lado para o outro e o Sr. Clodoaldo tentado impedir, até que a o corpo escapuliu e caiu no chão. Aí foi a vez de Afrodite se manifestar. Mas dessa vez ninguém teve dúvida de que se tratava de um homem, o que ela, ou ele, não estava fazendo questão nenhuma de disfarçar e com a voz o mais grossa possível deu um grito e se colocou de pé:        - Vamos parar com essa palhaçada! Vocês duas parem com esse escândalo que quem vai tratar do enterro do Guilhermino sou eu! Puxou o longo vestido que usava até a cintura, prendeu na cueca de cor roxa, se abaixo pegou o defunto no colo o colocando de volta no caixão e fez sinal para o representante da funerária dar prosseguimento as questões do enterro. – Pode seguir com os preparativos do enterro que eu vou arcar com tudo. Virou-se para as pessoas que permaneciam imóveis a observar a cena e falou em tão forte e decidido: - E tem mais! Não quero saber de mais alvoroço aqui hem!! Quem quiser ir ao enterro pode ir, mas sem escândalo. Depois já voltada para sua versão feminina, ajeitou o vestido e os cabelos e olhou com olhar de ternura e estendeu a mão para Eugenia: - Vamos querida acompanhar o enterro do nosso Guizão... Ele há de nos fazer muita falta... Eugenia não sabia o que fazer, estava no limite de suas forças, mas embalada por uma energia que não sabia bem de onde vinha deu a mão a Afrodite e as duas seguiram de braços dados atrás do caixão. Virginia correu para se juntar a elas, o que não foi aceito de inicio por Afrodite, mas que em seguida cedeu ao pedido de Eugenia. –Ah... deixa ela vir, afinal era a namorada dele... E as três foram de braços dados por todo cortejo, seguidas pelos amigos e parentes que não paravam de se acotovelar e comentar o ocorrido.

O REENCONTRO

Mariana estava meio atordoada, em um estágio intermediário entre o êxtase e a inércia. Mal conseguia andar e foi neste estado que chegou, não sabe como, à igreja de Santo Antonio no Largo da Carioca e lá ficou até que o sacerdote viesse lhe avisar que a igreja iria fechar e ela teria que sair, podendo retornar no dia seguinte se fosse do seu agrado. Só aí foi que se deu conta de quanto tempo havia ficado mergulhada em suas lembranças do passado, as quais reviveu após seu encontro com Astolfo, seu tão cobiçado amor dos tempos de colégio.

Eles se conheceram ainda na adolescência, estudaram juntos, e Mariana sempre nutriu por ele uma grande paixão, embora não correspondida, que nunca deixou de ser alimentada por ela que vivia na esperança de um dia conseguir chegar ao coração do rapaz, o que nunca aconteceu.
Astolfo após sair do colégio, seguiu carreira militar como era do gosto de seu pai, casou três vezes e atualmente estava separado. Somente teve filhos do primeiro casamento, duas meninas as quais criou com rigor, talvez por medo que se envolvessem com homens como ele, mulherengos e de difícil trato com compromissos. Mariana se formou em professora, casou uma única vez e tinha três filhos homens. Os dois nunca mais se viram até que por uma dessas casualidades do destino, se esbarram literalmente em plena Av. Rio Branco esquina com a Rua Sete de Setembro no centro da cidade e foi como se nunca tivessem se separado, pelo menos para Mariana que quase desmaiou quando se viu amparada pelos braços de Astolfo. Os dois vinham caminhando, apressadamente, em direções opostas no meio de um mar de pessoas que se acotovelavam uma com as outras abrindo passagem, quando Mariana tentando se desenvencilhar de um braço vindo em sua direção tombou para o lado e deu de cara com Astolfo que teve que segurá-la para que os dois não fossem ao chão. Em um primeiro momento a preocupação de Mariana foi a de ajeitar a saia que veio parar no alto da cintura e os sapatos que saíram dos pés com o impacto. Somente alguns segundos depois quando olhou para o até então desconhecido para pedir desculpas é que mais uma vez teve que ser socorrida por ele para não cair dado ao susto que levou ao reconhecer Astolfo, fazendo com que se sentisse tonta e com uma sensação de vertigem. Mariana ficou parada olhando o homem que a segurava quase que em transe, enquanto que Astolfo sem entender o que acontecia não sabia bem o que fazer. - A senhora está bem? Está sentido alguma coisa?  Enquanto falava Astolfo foi conduzindo Mariana para porta de uma loja, que ficava na esquina, com objetivo de saírem do meio do tumulto de pessoas que não paravam de passar quase que por cima deles. Era dezembro, faltavam poucos dias para o Natal, a rua estava apinhada de gente, mas Astolfo logo se arrependeu, pois a vendedora, vendo os dois na porta, se aproximou pensando serem compradores e Astolfo, que já estava perdendo a paciência, voltou a puxar Mariana sem dar resposta a vendedora que ficou a olhá-lo com sorriso sem graça, mas em seguida voltou ao interior da loja entendendo que não iria conseguir vender-lhes nada.  Mariana se sentindo muito constrangida pelo seu comportamento não sabia aonde enviar a cara de tanta vergonha, mas mesmo assim não conseguia controlar seu coração, que saltava feito uma bomba no meio de seu peito parecendo que ia explodir a qualquer momento, e os pensamentos que vagavam sem controle. “Meu Deus!...É ele. Como pode ser?... É o mesmo Astolfo de sempre... o meu Astolfo... Apenas alguns cabelos brancos o separam daquele menino...”  E permaneceu parada a olha-lo fixa e emocionadamente revivendo os tempos de colégio. Astolfo já estava começando a se irritar com aquela mulher ali parada a lhe olhar sem dizer uma só palavra, além do fato de estar atrasadíssimo para um almoço de final de ano com amigos que o esperavam no restaurante do Clube Naval, o que vez com que fosse se afastando com pedido de desculpas quando Mariana meio que sem voz o chamou. - Astolfo... Há quanto tempo... Você não está me reconhecendo não é? Astolfo, que já tinha virado e dado dois passos, voltou ao ouvir seu nome e olhou para Mariana com ar questionador e só quando ela abriu um largo sorriso foi que ele, mesmo sem lembrar seu nome, a reconheceu e inesperadamente lhe deu um forte abraço, o que a deixou sem fôlego e com as pernas bambas, mais desta vez conseguiu se controlar e não cair. - Nossa!... Meu Deus, mas que mundo pequeno... Não me lembro do seu nome, mas de você lembro bem.  Está ótima, bonita como sempre. Desculpe, realmente não havia lhe reconhecido. Mas também depois de tantos anos, não é?... Não sei como você me reconheceu... que ao contrario de você que permanece linda como uma menina, eu estou bem diferente, cabelos brancos, meio calvo... Mas como é mesmo o seu nome? Com a voz um pouco tremula, Mariana disse seu nome e permaneceu ainda por alguns segundo inebriada pela atmosfera do encontro e a cada elogio feito por Astolfo sentia o coração disparar de tanta emoção e fazia força para não demonstrar seu descontrole tentando parecer o mais natural possível e manter um diálogo para alongar aquele momento, mesmo sem saber o que dizer ao certo.  Já Astolfo, apesar de ter gostado de encontrá-la, não queria se estender muito para não se atrasar ainda mais para seu almoço e como Mariana não parava de falar, ele a pegou pelo braço fazendo com que o acompanhasse. E assim os dois seguiram conversando pela rua no meio dos transeuntes que seguiam com a pressa dos aflitos.

Astolfo pouco quis saber sobre a vida de Mariana, em parte por puro desinteresse, mas também porque mal tinha tempo de responder as perguntas feitas por ela que depois de se recuperar do susto de encontrá-lo abriu um rosário interminável de indagações. Queria saber tudo sobre a vida de sua paixão dos tempos do colégio. - Nossa Astolfo, que prazer em encontra-lo. Conte-me como você está? Você seguiu mesmo a carreira militar? Ah... lembro-me bem que você só falava sobre isso no colégio... Que era o sonho do seu pai... E você se casou? Tem filhos, quantos?...  E Mariana seguiu com seus questionamentos e Astolfo respondendo algumas perguntas, se esquivando de outras, não tendo muito empenho em satisfazer a curiosidade da mulher que caminhava a seu lado, a achando até um pouco estranha em querer saber tantas coisas sobre sua vida, afinal era só uma velha e distante colega de colégio com a qual nem tinha tanta intimidade assim e acabou por se arrepender de conduzi-la com ele.  “Ai... droga, porque não me despedi dela e vim embora sozinho?... Eu e essa minha mania de sempre querer ser delicado com as mulheres...” Pensava enquanto andava cada vez mais rápido para chegar logo e acabar com aquele interrogatório infinito que estava lhe irritando. Mariana, por sua vez, estava quase que correndo para poder acompanhar os velozes passos de Astolfo e parecia nem se importar com a falta de interesse de seu acompanhante. Estava em êxtase revivendo suas lembranças e fantasiando aquele momento como a realização de um sonho. “Meu Deus!... Estou andando de braço dado com Astolfo...” Era tudo em que conseguia pensar e sua emoção era tanta que nem percebeu que o verdadeiro objetivo de seu amigo de colégio era chegar o quanto antes a seu compromisso e pegá-la pelo braço havia sido a maneira que ele encontrou de seguir e não ser indelicado largando-a a falar sozinha no meio da rua.

Quando finalmente chegaram à frente do prédio do Clube Naval, Astolfo quase que de um puxão soltou-se dos braços de Mariana que a essa altura segurava-o com força parecendo querer mantê-lo junto dela para sempre, e sem muita cerimônia interrompeu o discurso questionador de sua antiga colega de colégio e se despediu dando-lhe um leve abraço, bem diferente do primeiro quando se encontraram minutos antes, e dois beijinhos no rosto dizendo que havia sido um prazer revê-la e adentrou pelo prédio sem que Mariana tivesse tempo de impedi-lo, e o que é pior, sem responder de forma concreta a pergunta mais importante para ela. – Astolfo, Astolfo... Poderíamos nos encontrar outro dia para conversamos mais. O que você acha?... Mariana questionou como um último suspiro. – Claro que sim Mariana... Claro... Qualquer dia desses... Mariana sacou a caneta da bolsa e continuou em sua investida. – Então anote meu celular e me dê o seu... Mas Astolfo parecendo não ter escutado, ou fingindo não ter, lhe deu um adeusinho e entrou no elevador a deixando parada nas escadas de entrada do prédio perdida num turbilhão de sentimentos, que iam da felicidade a frustração. E assim ficou por algum tempo, até que se deu conta que o motivo pelo qual estava no centro da cidade era devido a ter hora com um dermatologista tido como o mestre no tratamento estético e dificílimo de conseguir horário, ela havia marcado meses antes e estava esperando com ansiedade pelo dia da consulta. Mariana olhou o relógio e verificou que estava quase meia hora atrasada e que provavelmente não conseguiria mais ser atendida. Porém, não se incomodou muito quando ligou para verificar a viabilidade de seu atendimento e a secretária do médico disse que não seria mais possível para aquele dia, só tendo nova data dentro do prazo de seis meses. Desligou o telefone sem responder se queria ou não remarcar sua consulta e andou calmamente pelas ruas da cidade e sem perceber chegou à igreja de Santo Antonio no Largo da Carioca, onde entrou e sentou em um dos bancos da última fila e mergulhou em seus pensamentos.

“- Puxa... Que pena não ter dado tempo de passar o número do celular para ele... Deveria ter lhe dado antes, porque deixei para ultima hora?... Mas bem que ele poderia ter esperado um pouquinho... Era só um minuto... Ah... vai ver estava atraso para algum compromisso importante, não tinha tempo para ficar esperando eu me decidir a dar o telefone... Eu é que demorei demais como sempre... Mas ele nem se lembrou do meu nome... nem quis saber nada sobre a minha vida.... Mas também eu não parava de falar... Coitado quer ver que ficou com vergonha de perguntar... Ele sempre foi tão tímido. E quanto ao nome... o que importa o nome, o importante é que ele lembrou de mim e concordou em nos vermos algum dia... Ei mas espera aí!... Como vou encontrá-lo? Ele não tem meu telefone e nem eu o dele. Ai como eu sou estúpida, como pode uma mulher da minha idade agindo como uma adolescente dos tempos de colégio... Ah... mas ele gostou de me ver, eu pude sentir... Até me abraçou, andou de braço dado comigo... Ele gostou tenho certeza... Qualquer dia desses vou reencontrá-lo e não vou ser tão lenta. A primeira coisa que vou fazer vai ser lhe dar o número de meu telefone e pedir o dele...” E por lá ficou até ser educadamente convidada, pelo sacerdote, a se retirar da igreja.


E enquanto isso, Astolfo que estava na companhia dos amigos já tomando cafezinho após o almoço e num papo daqueles sem hora para acabar, comentava sobre o fatídico encontro com a colega de colégio. – Imaginem que vinha eu andando, atrasado e apressado como sempre, quando dou de cara com uma mulher que quase me jogou no chão. E adivinhem quem era? Uma velha colega dos tempos de colégio. A principio não a reconheci, mas depois quando ela me chamou pelo nome minha memória reavivou e lembrei. E aí é que se danou tudo. Vocês me conhecem, né? Sabem como é que sou com essa minha mania de ser gentil com as mulheres... Principalmente as gotosinhas... Pois bem, como estava atrasado para nosso almoço, resolvi vir andando com ela até aqui para não me despedir rápido e deixá-la para trás, pois ela pareceu tão emocionada quando me viu que fiquei sem ter como não bater um papinho. Meus amigos... vocês não imaginam como me arrependi de não tê-la deixado para trás. A criatura veio da esquina da Rio Branco com Sete de Setembro, onde nos encontramos, até aqui me crivando de perguntas, queria saber tudo, só faltou me perguntar meu tipo sanguíneo!... E para culminar, queria me dar o número de seu celular e pegar o meu para marcarmos de nos encontramos... Fingi que não escutei e entrei depressa no elevador, que para minha sorte estava no térreo. Deus me livre e guarde! A partir de agora, vou passar a andar mais atento pelas ruas para se encontrar com essa maluca outra vez fingir que não a vi... Ufa... Vamos pedir um licorzinho?...

Mensagens Trocadas

Fábio era fisioterapeuta e tinha preferência pelo tratamento de pessoas idosas. Gostava de trabalhar com os seus velhinhos como ele costumava chama-los de forma carinhosa. Achava que apesar das limitações próprias da idade tinham maior dedicação ao tratamento que as pessoas mais jovens, se bem que existiam as exceções.

Fábio trabalhava muito tinha os clientes particulares, como era o caso de D. Samira, sua preferida, e D. Gertrudes, além das clinicas em que prestava atendimento. Seu dia começava cedo, às 7h da manha já estava atendendo o primeiro cliente e tinha dias que quando chegava em casa já passavam das 10h da noite, mas estava feliz e plenamente satisfeito com sua profissão.

D. Samira, sua cliente favorita, era uma senhora elegante no alto dos seus setenta e cinco anos, estava sempre de ótimo humor e muito dedicada ao tratamento. Gostava muito de Fábio, admirava seu trabalho e dedicação aos idosos, mas o achava muito formal e serio demais para a idade. - Você ainda vai longe meu filho, mas precisa ser um pouco mais descontraído.  Dizia sempre ao se despedir após as seções de fisioterapia que fazia duas vezes por semana devido a uma artrose que já lhe acompanhava há alguns anos.
- Bom dia D. Samira, como tem passado? Está com ótima aparência e muito bonita! Ah já sei, mudou o penteado, não foi? Ficou muito bom!
- Bom dia meu filho. Eu estou bem, graças a Deus! Que bom que você gostou do meu cabelo, modifiquei o corte. E você, por favor, pare de me chamar de Dona, ora. Assim eu me acho mais velha do que sou. - Está bem D..., quer dizer Samira, vou tentar.  Fábio sempre procurava saber sobre a vida de seus pacientes além de, impreterivelmente, elogia-los. Talvez por isso fosse tão querido por todos eles.

D. Gertrudes sua outra cliente particular era bem diferente de D. Samira, embora fosse mais nova, tinha sessenta e sete anos, parecia bem mais velha. Estava constantemente de mau humor e vivia reclamando de tudo e não se empenhava muito no tratamento. Mas, como todos os outros gostava imensamente de Fábio, sentia-se segura com ele. Em uma ocasião, ele tentou fazer com que ela realizasse as seções de fisioterapia com um colega de profissão, devido a uma viagem imprevista, mas ela não aceitou e esperou ele voltar para dar prosseguimento ao tratamento.  - Boa tarde D. Gertrudes, como foi seu dia? Bonito vestido! Ficou muito bem na senhora. E aí, pronta para começarmos nossa serie nova?
 - Ai meu filho que nada. Estou mal, não tenho passado muito bem não. E obrigada pelo elogio, mas eu sei que é só bondade sua, nada em mim fica bem. Eu estou só esperando a hora de Deus me chamar para ir encontrar com meu velho. D. Gertrudes era um muro de lamentações e Fábio tentava animá-la, mas sem sucesso. - Que é isso D. Gertrudes, a senhora não pode falar assim. Vamos lá, quero animo, não pode ser assim.

No último mês, dois outros pacientes particulares de Fábio haviam falecido ambos muito idosos e com enfermidades graves. Desta forma só estava com as duas senhoras com atendimento privado e os demais, que eram muitos, atendia nas clinicas onde trabalhava.
Nas clinicas não tinha exclusividade de tratar somente dos idosos, mas os próprios senhores e senhoras, que por lá chegavam, logo ficavam sabendo de sua dedicação a classe mais velha e formavam fila de espera para serem atendidos por ele. Mas nem por isso Fábio deixava de atender, com a mesma dedicação, os mais jovens que também idolatravam seu tratamento que ia além das seções, ele costumava ligar, enviar mensagens de incentivo e orientação aos seus pacientes.

Fábio morava sozinho após o falecimento da irmã de sua mãe que lhe criou depois da morte de seus pais ainda na infância. Estudou com sacrifício, mas com muita dedicação, fez valer cada centavo gasto pela tia que trabalhava de sol a sol para vê-lo formado. Era um jovem muito tímido, quase não tinha amigos, divertia-se pouco, sua vida resumia-se ao trabalho e quando sobrava um tempinho gostava de ir ao cinema, sua outra paixão além da fisioterapia.
                                                                           
Em uma tarde, numa das clinicas em que trabalhava, Fábio atendeu a uma jovem chamada Samara que logo lhe chamou atenção devido à semelhança do nome com o da sua cliente favorita que só se diferenciava por uma única letra. O rapaz levado por tal analogia julgou que a paciente seria uma senhora. – Boa tarde, D. Samara... em que posso ajudar?... Fábio ficou desconcertado quando entrou na sala de atendimento, certo de que ia encontrar uma senhora, e deu de cara com uma jovem que deveria ter entre 23 e 24 anos no máximo. Ele ficou vermelho e completamente sem graça, mas Samara nada percebeu e atribui o fato de ser chamada de Dona a formalidade de atendimento e só se ateve a descrever sobre as dores no ombro que estavam lhe tirando o sono. Fábio olhou o pedido médico com a solicitação para fisioterapia, realizou a avaliação e em seguida encaminhou a jovem para os procedimentos burocráticos de autorização do plano de saúde para inicio do tratamento. Mas sua atenção não estava totalmente voltada ao que fazia como seria habitual. Sentia-se tremulo e um pouco nervoso sem conseguir encarar a nova paciente, a olhava de esguelha, ainda abalado por seu engano quanto à idade como se a moça fosse saber do ocorrido só de olhar para ele e ficar altamente ofendida. Ficou aliviado quando finalmente Samara saiu. Desejou nunca mais cruzar com ela.

Um mês já havia se passado e Fábio não tinha mais visto Samara, mas o jejum se quebrou naquela manhã ensolarada de sexta feira. – Bom dia! Nossa nunca mais lhe vi por aqui, até pensei que não trabalhasse mais na clinica. Tudo bem? Samara cumprimentava Fábio de forma efusiva após avista-lo no bebedouro que ficava no meio do corredor e ir ao seu encontro rapidamente. Fábio desta vez não teve tempo de disfarçar o susto e se engasgou com a água que bebia além de derrubar o copo em cima da moça, causando um pequeno acidente. – Ai desculpe!...Nossa como eu sou desastrado, deixa que vou pegar um pano... Desculpe-me. Fábio não sabia o que fazer, sua vontade era que o chão se abrisse e ele pudesse entrar. Já Samara, como da primeira vez, nada percebeu ou fingiu naturalidade o que parecia deixar Fábio ainda mais nervoso. – Não foi nada, tudo bem. Até que é bom um pouco de água gelada para refrescar esse calorão que está fazendo. Mas e você, por que sumiu? Nunca mais lhe vi. Foi com uma imensa força para voltar ao estado normal que Fábio respirou e conseguiu responder. – É que este mês estou no turno das 6h da tarde às 10h da noite, deve ser por isso que não estamos nos encontrando. Estou vindo hoje de manhã só para cobrir o horário de um colega que me pediu... Fábio tentava demonstrar naturalidade ao responder e Samara continuava em seu tom leve e alheio ao susto do fisioterapeuta. – Ah... que pena! Já ouvi falar muito de você por aqui. Já soube que existe até fila de espera para ser atendido por você! Mas é verdade que você só gosta de atender os vovozinhos e vovozinhas? Gostaria muito de poder fazer minhas seções com você também. Já estou aqui há um mês, mas não estou vendo grandes melhoras. Quando é que você vai voltar para o horário da manhã? Samara falava de forma tão descontraída e demonstrando interesse pelo lado profissional de Fábio que acabou por deixá-lo relaxado arrancando-lhe até um sorriso. – Nada disso, atendo a todos, idosos, jovens, todos. Mas me diga o que está havendo com você? Seu problema pelo o que me lembro era uma tendinite no ombro esquerdo, certo? Esses casos geralmente são demorados mesmo, tem que ter paciência e persistir no tratamento. Você tem feito as seções regularmente? A assiduidade é muito importante para obter um resultado satisfatório. Samara ficou encantada por Fábio se lembrar de seu caso mesmo só estando com ela uma única vez e já há algum tempo. – Nossa você lembrou mesmo de mim. É isso mesmo, estou com uma tendinite terrível! Tenho feito às seções, mas realmente não com essa regularidade toda... Mas o fato é que não estou vendo melhora e acabo ficando desestimulada. Quando é que vai estar por aqui de manhã de novo para eu te procurar para você poder dar uma olhada? A noite é muito ruim para eu vir até aqui.  Fábio abriu sua agenda, coçou a cabeça e após alguns segundos olhou para Samara com a testa franzida e disse: - É parece que ainda vai demorar um pouco, só volto para o horário da manhã daqui a vinte dias. Mas não tem problema, todo mundo aqui é muito bom, tenho certeza que se você fizer o tratamento com mais empenho vai melhorar. Tente ter uma regularidade, vir todos os dias e logo, logo você se livra disso, vai ver. Samara ficou decepcionada, pois estava realmente interessada em ser examinada de novo por Fábio e principalmente que ele acompanhasse seu tratamento. – Ah... que pena! Vinte dias? Ei... mas espera aí! Você atende particular, não atende? Consegue um horário para mim na parte da manhã, por favor, ou será que já está tudo lotado? Pronto, o desconforto de Fábio voltou. Pois para ele era totalmente fora de propósito atender os pacientes da clinica de forma particular e ao mesmo tempo não queria ser indelicado com Samara. – É atendo sim... mas acho melhor a senhora prosseguir com seu tratamento aqui na clinica tendo em vista que já foi iniciado e só está precisando de uma regularidade maior...

Fábio estava totalmente sem graça e desta vez Samara percebeu. – Nossa, mas que formalidade. Não precisa me chamar de senhora, por favor. E olha não tem problema você me atender como cliente particular. Estou vendo que você está sem jeito porque sou cliente da clinica, não é? Se o problema é esse tá resolvido. Desligo-me da clinica e pronto. Não estou mesmo satisfeita. E assim fico fazendo o tratamento só com você. Pode deixar que não vou comentar nada com ninguém, tá bom assim? Ai por favor, não diga que não. Todos falam maravilhas sobre seu trabalho, sei que se fizer o tratamento com você vou ficar boa, por favor! Samara falava tanto que Fábio estava ficando tonto, mas ao mesmo tempo não se sentia a vontade para aceitá-la como cliente e tentava argumentar sem o menor sucesso. - Por favor, Samara. Não é que eu não queira atende-la, mas é que realmente acho que deveria continuar seu... Samara mais uma vez o interrompeu e apelou para o seu lado profissional. – Fábio, por favor, me escute. Eu vou sair da clinica de qualquer jeito, não estou satisfeita aqui, isso não tem nada a ver com você, já resolvi. Agora, será que você realmente vai recusar me aceitar como cliente só porque eu já fiz tratamento em uma das clinicas que você, por acaso, trabalha? Não vai nem tentar fazer com que eu melhore? Vai me deixar sentindo dor enquanto poderia pelo menos tentar me fazer melhorar? Mas tudo bem, já vi que não tem jeito mesmo, vou procurar outro fisioterapeuta que queira me atender. Samara já estava desistindo e ficando um pouco irritada quando Fábio finalmente resolveu ceder aos seus apelos. – Tudo bem Samara, vamos tentar fazer um tratamento. Mas por favor, não me leve a mal, só estava tentando ser o mais ético possível. Mas já que você está me garantindo que sairá da clinica de qualquer maneira..., não vejo porque não atendê-la. Passe-me seus telefones que entrarei em contado para vermos um horário. Samara ficou feliz com a decisão de Fábio e já na semana seguinte iniciaram o tratamento.

Já havia se passado dois meses do inicio do tratamento de Samara e a melhora foi muito significativa. Mas com o passar o tempo e a proximidade entre os dois, o esperado, pelo menos para Samara, acabou por acontecer: Os dois se e apaixonaram e após muita resistência da parte de Fábio, que não queria de jeito nenhum misturar trabalho com a vida pessoal, eles se tornaram enfim namorados. O relacionamento fez muito bem para Fábio que se tornou uma pessoa mais alegre, mais solta. Já Samara foi ficando com menos empenho no tratamento, toda vez que estavam juntos só queria saber de namorar, tendo em vista que o tempo de Fábio era escasso, o que fazia com que sua agenda pessoal fosse prejudicada. Fábio não estava nada satisfeito com a situação, não queria misturar as coisas, além de realmente achar que o tratamento de Samara já poderia ter sido concluído, sanando por completo o problema, o que ainda não tinha acontecido devido à falta de empenho de sua paciente e agora namorada. Mas Samara estava se sentindo muito bem com os resultados obtidos e não compactuava da ansiedade de Fábio pelo termino da fisioterapia, para ela tudo estava correndo a contento.

Fábio era um profissional altamente competente prestava toda a assistência a seus clientes, mesmo quando não estava presente. Fazia contatos permanentes, gostava muito de utilizar mensagens via celular para ter noticias dos resultados obtidos com as seções e para enviar temas de incentivo e foi numa dessas vezes que aconteceu um engano extremamente desagradável. Estava ele no metrô a caminho da casa de D. Samira, para mais uma seção de fisioterapia e como viu que iria chegar um pouco fora do horário marcado, apenas uns minutos, mas para não atrasar sua paciente resolveu lhe enviar uma mensagem que dizia assim: - Boa tarde, já estou a caminho, mas devo me atrasar alguns minutos. Para agilizar, poderia começar a fazer o alongamento e assim quando eu chegar iniciamos a serie sem causar maiores atrasos. Até breve.  Após enviar a mensagem fechou o celular recostou a cabeça e de repente pensou que seria uma boa ideia mandar uma mensagem a sua namorada a fim de incentivá-la ao tratamento, como fazia com seus demais clientes, mas achou que poderia ser de uma forma mais descontraída e até mesmo um pouco ousada para lhe despertar o interesse e abriu mais uma vez o celular e digitou: - Você anda muito desatenta e desinteressada com seu tratamento. Não estou satisfeito com seu empenho. Afinal, em primeiro lugar sou seu fisioterapeuta. Em nossa próxima seção quero mais dedicação de sua parte, vamos fazer toda serie, e aí depois... quem sabe posso lhe fazer uns agradinhos mais calorosos, mas só depois do dever cumprido. Antes não quero saber de saliência. Estou certo que você não vai se arrepender de se dedicar com afinco ao tratamento, vou saber recompensá-la muito bem. Até a noite, bjs.  Fábio seguiu viagem, tranquilo, a caminho da casa de D. Samira e estaria tudo bem se não fosse pelo fato de ter trocado as remetentes no enviou das mensagens. Quando estava selecionando o celular de D. Samira para encaminhar o primeiro texto, na verdade clicou, por engano, em cima do numero de Samara e quando foi a vez de mandar a mensagens para Samara, o numero selecionado foi o de D. Samira. A confusão se deu devido aos nomes só se diferenciarem por uma única letra e ele ter registrado o número de D. Samira em seu celular somente pelo nome sem Dona de tanto ela insistir para que a chamasse de você. Enquanto isso, D. Samira lia por várias vezes a mensagem que acabar de receber e por mais que tentasse não conseguia entender e falava em voz alta andando pela sala. – Não estou entendendo... Por que será que O Fábio não está satisfeito com meu empenho? Sempre me dediquei tanto ao tratamento. E que estranho o jeito dele... Tudo bem que eu sempre o achei formal demais e até mesmo insisti para que relaxasse em nossas seções e me tratasse com um pouco mais de descontração, mas não esperava tanto! E o que será que ele quis dizer com me fazer uns agradinhos? Com não querer saber de saliências? Que saberia me recompensar? Ai, ai, ai, ai, ai... não estou gostando nada do tom desta mensagem. O que será que houve? Será que de tanto eu insistir por um pouco mais de descontração ele acabou por confundir as coisas? E porque trocou o horário assim tão em cima da hora? E sem falar comigo, passando para a noite? D. Samira era uma senhora de espírito jovem, mas muito seria e sempre admirou o jeito respeitoso de Fábio, mesmo o achando muito formal. Ela estava confusa, mas muito irritada com aquela mensagem a qual julgou grosseira e estava a ponto de responder quando o interfone tocou com o porteiro anunciando que Fábio estava subindo. D. Samira se espantou, pois aquela altura não o esperava mais tendo em vista que na mensagem havia mencionado que a seção seria a noite. Ela estava nervosa, respirou fundo e foi abrir a porta disposta a dispensar Fábio sem ao menos deixar que ele entrasse. Pois uma coisa que não admitia era ser desrespeitada, principalmente por alguém por quem sempre teve admiração. Já Fábio, sem desconfiar do que lhe aguardava, assim que D. Samira abriu a porta a cumprimentou e elogiou, com a formalidade e cordialidade de sempre. – Boa tarde D... quer dizer Samira, como tem passado? Está com ótima aparência e muito elegante. Bonito vestido... Foi só o que Fábio conseguiu dizer antes que D. Samira o interrompe-se de forma ríspida lhe estendendo um cheque e praticamente o mandando embora sem lhe dar chance de falar, o que lhe causou grande espanto. – Boa tarde Fábio. Acho que isso é tudo que estou lhe devendo pelas seções deste mês. Inclui a de hoje também, apesar de que não vou fazer. Por favor, confira. O recibo você pode me enviar depois, pelo correio ou por um portador, como preferir. Agora se você me der licença tenho um compromisso. Se voltar a precisar de seus serviços entro em contato. Fábio estava estático parado na porta com o cheque na mão sem entender absolutamente nada do que estava acontecendo e sua única reação foi segurar a porta, antes que D. Samira a fechasse, em busca de uma explicação, mas sua tentativa foi em vão. – D. Samira... o que foi que houve?  Foi alguma coisa que eu fiz? Foi pelo meu atraso?  Mas não me atrasei tanto assim, olha foram só dez minuto. Eu lhe passei uma mensagem falando a respeito, a senhora não recebeu? D. Samira voltou-se para ele mais irritada e aos gritos esbravejou: – Ah... a mensagem! Recebi sim e saiba que não gostei, viu! Ponha-se daqui para fora seu sem vergonha! E se não fosse pela agilidade de Fábio que pulou rápido saindo da frente ela o teria acertado com a porta bem no meio do nariz. Ele ainda insistiu, tocou a campainha por várias vezes, bateu na porta, tentou argumentar, mas de nada adiantou, D. Samira não apareceu nem fez qualquer comentário e o rapaz resolveu então ir embora completamente perdido e muito triste, pois não via motivo para que um simples e pequeno atraso causasse uma reação daquelas.

Fábio não sentia a menor vontade de trabalhar, seu desejo era de ir para casa, mas seu profissionalismo, que sempre falava mais alto, lhe dizia que não podia deixar seus outros clientes a esperar, já bastava o que um simples atraso acabara de lhe causar e seguiu rumo a uma das clinicas em que prestava atendimento onde encontrou uma fila de pacientes a sua espera.


Em casa Samara começou a se preparar para receber o namorado após ler a mensagem enviada por ele, a qual achou estranha, mas nem de longe desconfiou que Fabio pudesse ter lhe encaminhado por engano.  – Ai o Fábio com essa sua formalidade! Agora resolveu me tratar como uma de suas clientes, mas tudo bem. Depois um dobro ele, deixa só ele chegar aqui e me ver fazendo os tais alongamentos.  Após algum tempo Samara já começava a ficar impaciente. - Mas que coisa, ele disse que já estava chegando e já passaram quase duas horas e nada. Droga! Mudei todos os meus planos da tarde por causa dele e nada. Só estava esperando ele aqui à noite. Ele muda o horário por conta dele e ainda se atrasa desse jeito! Ai... vou ligar para ele. Samara ligou várias vezes para o celular de Fábio, mas não teve sucesso, pois sempre que estava em atendimento ele desligava o telefone e só ia ver os recados no final das seções. Mas naquele dia estava com a cabeça fora de foco e esqueceu-se de ligar o telefone e não viu os vários recados da namorada. As horas foram passando e após várias ligações Samara estava realmente irritada e de muito mau humor e quando o namorado, finalmente chegou a sua casa, por volta das oito horas da noite, ela o recebeu sem o menor carinho como era de costume. Já Fábio após um dia pesado onde teve que enfrentar o destempero de sua cliente favorita, que por mais que tentasse não conseguia compreender, atender a vários clientes na clinica e ainda D. Gertrudes com todo seu mau humor, seguia a caminho da casa de Samara completamente esgotado e louco por alguns momentos de relaxamento e romance ao lado de sua amada, mas não foi o que aconteceu para seu desapontamento. – Oi meu amor! Nossa estou exausto e louco por uns momentos de chamego com você... Mas é claro que só depois de nossa seção. Você não imagina como foi meu dia. Ufa! Vou tomar um banho e volto logo para começarmos a serie e depois... Fábio falava e ia entrando, deixando suas coisas na sala e se dirigindo para o banheiro para tomar um banho, pois sabia que àquela hora Samara estava sozinha em casa e sentia-se mais a vontade. Já Samara estava com a cara fechada sem dar a menor atenção ao que o namorado falava e só queria saber de tomar satisfação do porque ele a fez esperar tanto além de não ter respondido a nenhum de seus telefonemas e o interrompeu de maneira nem um pouco afetuosa. – Olha aqui Fábio, você está pensando o que? Estou te esperando há horas! Mudei todos os meus compromissos da tarde por sua causa e você não apareceu. Você vive me enchendo a paciência para eu levar o tratamento a sério, aí você muda a hora da seção e ainda por cima não aparece e nem tem a consideração de avisar! Ah, por favor! Liguei para o seu celular várias vezes e nada! E agora você me aparece aqui dizendo que está exausto com a cara mais limpa sem me dar a menor explicação e ainda dizendo que quer chamego! Não sou palhaça não! E trate de pegar as suas coisas e ir tomar banho na casa da mãe Joana! E entrou para o quarto batendo a porta deixando Fábio na sala sem entender nada, ele ainda tentou foi até a porta do quarto de Samara, bateu, mas depois de algum tempo resolveu ir embora sem saber de nada, o que achou que seria a melhor coisa a fazer. – É hoje o dia não está para mim mesmo, as mulheres todas resolveram surtar e eu não tenho capacidade de entender isso. O melhor que tenho a fazer é ir para casa e dormir. Quem sabe amanhã eu acordo e descubro que esse dia nunca existiu. Pegou suas coisas saiu pelas ruas caminhando pensando o que havia acontecido e sem encontrar explicação chegou em casa e se jogou na cama de roupa e tudo procurando apagar aquele dia completamente fora de propósito de sua mente.

Dizem que eu morri

Mercedes era a primeira dançarina do grupo de dança do Teatro “El Tango” em Buenos Aires e fazia par com o charmoso Carlos, que para pesar de Mercedes vivia cercado pelas damas.
Mercedes era apaixonada por Carlos, mas se contentava em ser apenas sua parceira de dança já que o rapaz estava longe de ser homem ligado a compromissos que lhe tomassem mais do que uma noite.

Mercedes chegava cedo ao teatro, gostava de verificar todos os itens antes do espetáculo e quando possível repassar os passos, o que acontecia raríssimas vezes tendo em vista que Carlos estava sempre atrasado e mal conseguia trocar de roupa antes de entrar em cena. Mercedes sempre lhe chamava a atenção, mas de pouco adiantava. De fato formavam um belo par, quem os via dançar não imaginava que se encontravam quase na hora de entrar no palco e praticamente não ensaiavam. Dançavam juntos há muitos anos e a afinidade entre eles era latente, respiravam sensualidade, embora para Mercedes fosse um pouco mais que isso, mas para Carlos demonstrar paixão no entrelace dos passos era o que realmente interessava e ele conseguia.

O Teatro abria de terça a domingo, mas Mercedes e Carlos somente se apresentavam as sextas e sábados a noite e nos domingos na matine, eram artistas da primeira linha do teatro, só faziam parte dos espetáculos principais.

Mercedes morava no centro da cidade, perto do “El Tango”, e mesmo nos dias em que não estava em cena ia assistir aos companheiros se apresentarem. Ela adorava aquele ambiente de musica, gente animada, feliz, falando alto, rindo mesmo que sem motivo, dizia que preferia estar ali a ter que enfrentar suas noites solitárias de quando não estava trabalhando. Era uma mulher linda, porém extremamente solitária e triste. Devido ao amor que sentia por Carlos não conseguia se relacionar com ninguém, embora pretendentes não lhe faltassem.

Carlos via Mercedes como uma linda mulher, mas só isso, até tentou se aproximar algumas vezes, mas quando percebeu que o interesse da moça ultrapassaria ao seu limite de uma noite resolveu se afastar para não causar falsas esperanças, embora sua estratégia não tenha cumprido o objetivo, pois Mercedes estava cada vez mais apaixonada por ele que parecia não perceber ou ao menos não demonstrava qualquer tipo de reação aos seus olhares ardentes.

E assim a vida de Mercedes seguia sem muita emoção até aquela fatídica noite de sábado. Era inicio de inverno, mas o clima já estava muito frio e naquela noite em especial a temperatura estava nos limites de congelar os ossos. Mercedes chegou cedo ao “El Tango”, como era de costume, e não se sentia bem estava com muito frio, não conseguia sentir-se aquecida mesmo com a calefação do teatro. Foi para seu camarim deitar e tentar relaxar um pouco. Após algum tempo voltou para o salão já com aparência melhor, tomou dois conhaques e disse que aquela noite dançaria como nunca e dirigiu-se para trás do palco onde Carlos já a esperava para entrarem em cena. Não deram mais do que dois passos e Mercedes caiu aos pés de Carlos imóvel como uma folha de papel inerte. – Mercedes!Mercedes!... Carlos abaixou a segurou nos barcos e pôs-se a chamá-la sem obter resposta. As luzes do tetro acenderam e o publico começou a ficar em polvorosa sem entender o que havia acontecido. Rapidamente a cortina fechou e um médico que estava na platéia atendeu ao chamado para socorrer Mercedes que permanecia caída e inerte nos braços de Carlos que a apertava forte contra o peito e teve dificuldades de soltá-la quando o médico se próximo. - Por favor, abram espaço para que eu possa examiná-la. O médico colocou os dedos do lado do pescoço de Mercedes, apertou seus pulsos, examinou os olhos com uma pequena lanterna sob os olhares fixos dos dançarinos que o cercavam e deu a notícia: Ela está morta. Não há nada o que fazer. Sinto muito. Foi um burburinho só, uns choravam, outros diziam não acreditar e Carlos jogou-se sobre o corpo já frio de Mercedes e pôs-se a chorar sem querer largar como se ela lhe pertencesse.

E no meio de toda aquela confusão do outro lado do palco estava ela, Mercedes, sem entender nada. - Ei!! Gente o que está acontecendo? Por que pararam com o espetáculo? E ia tentando passar no meio de todos empurrando um e outro quando se deparou com a mulher, caída no chão, envolvida pelos braços de Carlos que não parava de chorar. – Ei!! Quem é essa aí?... E já ia se abaixar para ver melhor quando ouviu Carlos dizendo no meio do pranto que não podia acreditar que Mercedes havia morrido, quase que ao mesmo tempo em que se afastava deixando o rosto da mulher a mostrar. Mercedes ficou paralisada, não podia acreditar no que acabara de ouvir e de ver. Era ela, caída no chão, com todos a sua volta a chorar a sua morte.  – Estão todos loucos! Pensou e começou a gritar tentando chamar atenção para si. – Ei!!!! Olhem, não morri coisa nenhuma!... Estou aqui!!! Olhem para mim!!! E sem ser ouvida andava de um lado para o outro tentando obter a atenção de alguém e não conseguia entender porque ninguém lhe ouvia. Chegou a pensar se tratar de alguma brincadeira, uma performance surpresa do espetáculo que ninguém havia lhe contato e no auge de seu desespero correu até Carlos com intuito de fazê-lo parar e quando tentou agarrá-lo pelos braços viu que suas mãos o atravessavam não sendo capazes de segurá-lo, tentou por várias vezes e nada. Entrou em pânico, não sabia o que fazer ninguém podia lhe ver, nem escutar, resolveu então abrir as cortinas para pedir ajuda ao publico, ver se alguém poderia lhe ajudar, mas o teatro estava vazio, todos já haviam saído, foram retirados após a explicação do diretor da casa do que havia acontecido, mas permaneciam na calçada do lado de fora a espera de mais noticias e Mercedes seguiu o vozerio e foi até lá. Ao sair deu de cara com um aglomerado de pessoas que falavam sem parar sobre o acontecido, ou seja, a sua morte no palco. – Meu Deus será que ninguém consegue me ver, será que morri mesmo?... Não, não, não pode ser... Não estou morta!!!!... Gritava e chorava andando pelo meio do povo, que não arredava pé da porta do teatro quando deu de cara com dois olhinhos fixos nela. Olhou para um lado pro outro, pra trás, a procura de quem aquela menina pudesse estar olhando e não viu ninguém. – Meu Deus ela está me vendo!... Andou até a menina que lhe abriu um largo sorriso. – Você está me vendo?... A menina fez que sim com a cabeça, mas em seguida foi puxada pela mãe que não fazia idéia do que se passava. Mercedes foi atrás. – Você pode me ouvir?... Por favor, me ajude. O que está acontecendo?... A menina olhava fixamente para Mercedes e colocou a mão na frente da boca e disse como que um segredo. – Você morreu. Lá no palco. Mercedes não podia acreditar no que acabara de ouvir e aos prantos pedia para que a menina lhe explicasse o que havia ocorrido, mas a mãe da garota mais uma vez a levou e desta vez para longe de seu alcance, e por mais que corresse atrás delas as perdeu no meio do povo que não parava de chegar a porta do tetro em busca de noticias.

Mercedes voltou para dentro do teatro e encontrou Carlos, ainda chorando, ao lado do corpo que agora estava no centro do palco em cima de uma mesa coberto por um lençol branco e todos os outros em volta de mãos dadas, também chorando, em uma espécie de oração pelo que pode entender. E pela primeira vez naquela noite pensou que realmente estava morta, embora não se sentisse. Foi até Carlos passou a mão por seus cabelos, tentou sem sucesso enxugar suas lágrimas e pensou: - Por que choras tanto a minha morte? Será que gostavas de mim? E nessa hora Carlos abaixo e beijou o rosto de Mercedes e baixinho disse que a amava e só não pôde lhe dar a segurança que ela queria, mas mesmo assim a amava. E Mercedes mais triste e amargurada ficou agora já convicta que realmente estava em seu leito de morte. – Ah Carlos por que nunca me disse isso? Tudo poderia ter sido diferente... Por quê?...

- Oh Mercedes, Mercedes!!!... Vamos o espetáculo já vai começar!... Vamos!... Batia Carlos insistentemente a porta do camarim de Mercedes que demorou muito a atender acordando de um pulo levando um grande susto sem saber ao certo quem estava a lhe chamar. 
- O que houve?... Quem está aí?...

-Oi sou eu Carlos!... Estou batendo na porta faz séculos. Vamos estamos atrasados! O que deu em você para perder a hora desse jeito?...Mercedes abriu a porta e ficou olhando para Carlos, ainda meio tonta e confusa.

- Não sei... estava cansada, não me sentia bem... Deitei e acabei dormindo um pouco... Não sei bem... Acho que estava tendo um sonho ruim...  Que bom que você me acordou. Vá indo que já, já eu vou. Mercedes acabou de se arrumar rapidamente e seguiu atrás de Carlos.

Naquela noite, Mercedes estava esfuziante, dançou como nunca, melhor do que todos os dias e com uma sensualidade diferente, mais ardente e mais próxima de Carlos, que embora não estivesse entendendo tratou de aproveitar e apertá-la mais em seus braços.