terça-feira, 6 de abril de 2021

Quarto 410

 

Era um dia de sol quente, “céu de brigadeiro” ou algo assim, não sabia bem qual a expressão usar ao certo para descrever aquele azul reluzente, sem nenhuma marca, que levava o olhar até o infinito.

Dirigia sem destino certo, sem ter para onde ir. Quando se deu conta, o sol já não mais esquentava e o céu havia escurecido. Perguntou-se como não havia percebido o tempo que estava na estrada e, com a súbita consciência do longo período passado dentro do carro, veio a fome, a sede, o cansaço nas pernas e todas as sensações de um corpo que grita após longas horas dentro de um veículo. Resolveu, então, que era hora de parar e procurar algum lugar para passar a noite; recuperar-se para seguir viagem na manhã seguinte. Perguntava-se para aonde iria tendo em vista não saber ao certo onde estava quando avistou um posto de gasolina à frente. Foi até ele em busca de informação e aproveitou para abastecer e verificar as condições básicas do veículo. Desceu do carro enquanto o frentista cuidava dele e entrou na pequena loja que ficava na parte de trás, comprou água, alguns biscoitos e um sanduíche, que devorou em segundos. Tomou dois cafés, pediu informações de algum hotel por perto, pagou e saiu. Ficou sentada ainda por um tempo no pequeno banco encostado na porta do lado de fora da loja enquanto tomava pequenos goles da garrafa de água que adquiriu. Levantou-se, pagou ao rapaz pelo serviço, entrou no carro e seguiu para encontrar o hotel que lhe informaram como sendo o único na região.

 

O hotel lhe pareceu com uma boa aparência e aconchegante. Se bem que ela não sabia se suas impressões eram realmente o que sentia ou estava sendo levada pelo fato de ser o único na região e, portanto, não tinha opções, mas estava muito cansada para ficar analisando suas reações. O que queria mesmo era um bom banho quente e uma cama onde pudesse se esticar e dormir.

 

Mal tinha encostado no sino, pendurado na parede do canto esquerdo do pequeno balcão para ser tocado pelos os que ali chegavam em busca de atendimento, e um rapaz com um sorriso largo surgiu parecendo ter brotado do nada, assustando-a um pouco, e logo se colocou a atendê-la. Não havia muitos quartos disponíveis; na verdade, só dois estavam vagos. Ela escolheu o que tinha vista para o mar, mesmo sendo uma visão um pouco distante e sabendo que não teria nem tempo para admirações, pois só queria dormir e sair bem cedo, na manhã seguinte. Optou por pagar um pouco mais caro para sentir a energia que emanava dos ares marítimos. Pegou as chaves do quarto 410 e, sem aceitar ajuda para levar sua bagagem, subiu as escadas com sua pequena mala.

Ao entrar no quarto, abriu a janela em busca das vibrações positivas que acreditava virem dos ares do mar e ficou ali por uns segundos, mas logo a fechou, pois o ar gélido da noite fria e escura invadia o quarto. Tirou as roupas, jogando-as em um pequeno sofá encostado na parede em frente a cama, e entrou em um demorado e merecido banho quente, indo para a cama em seguida.

Acordou com a luz do sol que entrava pelas frestas laterais da janela e sentiu-se aquecida e com uma sensação de bem-estar que há muito não experimentava. Ao olhar o celular, sobre a mesinha de cabeceira ao lado da cama, assustou-se com a hora e levantou-se de um pulo. Já passava das nove e, a essa altura, pretendia já estar na estrada. Tomou um banho e, ao fim deste, já estava com uma outra perspectiva. Sentou-se na beira da cama e começou a admirar o quarto, pequeno, mas muito confortável e aconchegante. Passou a mão pelos lençóis, achando-os macios, levou o travesseiro ao encontro do rosto, abraçando-o como se fosse um amigo cheiroso, e pensou: “Por que tanta pressa, afinal não tenho destino certo nem hora para chegar a lugar algum?”. Vestiu-se e desceu em busca de um merecido café, pois acabara de se dar conta que estava faminta. Ao chegar à recepção, foi recebida por uma agradável mulher de meia-idade que, antes mesmo de ser solicitada, lhe conduziu ao salão de refeições onde uma farta mesa de café a esperava. Sentou-se em uma das pequenas mesas e foi servida por um rapaz de óculos e muito simpático. Comeu feito uma rainha e resolveu dar uma caminhada até a praia que não ficava muito longe dali.

Voltou já na hora do almoço, que era servido no mesmo salão do café, mas, apesar do aroma maravilhoso, não quis comer, pois ainda não tinha fome devido ao farto café da manhã que tomara há pouco tempo, e subiu decidida a arrumar suas coisas e partir. O quarto tinha sido arrumado e exalava um cheiro de flores muito agradável. Sentia-se como em um ambiente conhecido e bem familiar. Era como se já estivesse estado ali. Resolveu, então, que passaria mais aquela noite e seguiria sua viagem na manhã seguinte.

Não saiu mais do quarto. Pediu uma sopa na hora do jantar, tomou um banho morno e tentou dormir, sem sucesso. Levantou-se, abriu a janela e deixou o ar frio da noite a abraçar. Ficou algum tempo admirando o céu estrelado e, de repente, achou que tivesse sido chamada por uma voz. Virou-se assustada para dentro do quarto, fechando a janela em seguida, mas não havia ninguém ali. Sacudiu a cabeça, dizendo para si mesma que deveria ter escutado um som de algum animal e, quando ia em direção à cama, olhou para o canto do quarto e viu um armário, que até então não havia notado. Era um móvel antigo, composto de várias gavetas e achou curioso como não o tinha visto antes. Ficou atraída por ele e, em um impulso de curiosidade, pôs-se a abrir as gavetas. Estavam vazias. Mas a última, que era mais funda do que as outras, quando aberta, teve a tábua de baixo levantada, o que a estava impedindo de fechar de volta. Ao tentar ajeitar, viu que se tratava de um fundo falso. Não teve dificuldades de removê-lo por completo, pois a madeira já estava fraca, e quando a levantou deu de cara com várias cartas amaradas com uma fita de cor indefinida, com as pontas rasgadas e fotos, também unidas por material semelhante. Foi invadida por um sentimento misto de querer abrir e de achar que não devia. Mas a curiosidade foi maior e, no instante seguinte, estava sentada na cama, lendo as cartas e vendo as fotos. Deveriam ser bem antigas, o papel estava amarelado e as fotos, além de gastas, eram de pessoas com vestes que mais pareciam de um filme de época. Eram muitas e ela pensou de quem seriam, se foram esquecidas ou estavam guardadas ali.

Passou a noite entretida naquelas linhas, eram cartas de amor. Pareciam terem sido trocadas entre duas pessoas que ficaram separadas por um longo tempo contra a vontade. Confidências, lamentos de uma vida passada a distância, projetos, sonhos de um futuro que não tinha como saber se foram realizados. Ficou penalizada por eles, pelo sofrimento e amor colocado ali; parecia sentir a dor deles. Já era madrugada quando deixou um pouco as cartas de lado e pegou as fotos. Pareciam pessoas conhecidas, próximas, mas sabia que não poderiam ser, pois eram muito antigas, de uma época muito distante. Não conseguiu pregar os olhos e, quando se deu conta, o sol começava a dar os primeiros sinais de que o dia havia chegado. Estava como se não tivesse passado a noite em claro; sentia-se bem-disposta.

Juntou as cartas e as fotos, mas não as colocou de volta onde as encontrou. Sentia que não conseguiria mais deixá-las ali e as guardou junto com as suas coisas. Tomou um demorado banho e saiu para caminhar. Sua intenção era de ir em direção à praia, mas, quando percebeu, estava na frente de uma pequena gruta. Não sabia como havia chegado ali e aproximou-se para ver mais de perto. A entrada estava coberta com uma vegetação úmida de aspecto não muito agradável, o que a incomodou e a fez desistir da ideia de explorar o interior. Achou que se tratava do lugar de despedida descrito em uma das cartas, daquelas duas pessoas apaixonadas que ela sentia como se as conhecessem. Começou a sentir a respiração ofegante e resolveu que era melhor voltar ao hotel.

Entrou apressadamente e foi direto para o lavado que tinha ao lado do salão onde estava sendo servido o café. Jogou água fria no rosto e na nuca, deixando-a escorrer pelas costas, e ficou por alguns minutos olhando-se no espelho, perguntando o que ainda estava fazendo naquele lugar, mas sacudiu a cabeça como não querendo ouvir a resposta e saiu. Foi para o salão, sentou-se à mesma mesa da manhã do dia anterior. Fez sua refeição calmamente, mas não conseguia parar de pensar nas cartas, nas imagens das pessoas nas fotos que ela poderia jurar que conhecia e no passeio que a levou aquele lugar desconhecido e misterioso para ela.

Quem seriam aquelas pessoas? Por que achava que as conhecia? Perguntas lhe invadiam e, por alguma razão, ainda desconhecida, tinha que descobrir. Foi até a recepção e procurou saber se havia alguma fonte de informação a respeito da história daquele lugar, de sua origem, do que havia existido ali antes do hotel. A senhora que estava atrás do balcão a olhou com ar simpático, observando-a por alguns segundos, e perguntou por que estava interessada. Ela respondeu que estava atraída pela energia daquele lugar por uma razão que não sabia explicar. A mulher lhe pediu que a esperasse um instante e chamou um rapaz pelo telefone interno, para ficar na recepção em seu lugar.

As duas foram dar uma volta no jardim da propriedade, que, como o hotel, era lindo e parecia guardar segredos, e chamou sua atenção o fato de não ter notado aquela parte do local até aquele momento. Sentiu como estivesse passando por ali pela primeira vez e um arrepio percorreu-lhe o corpo e levou um susto quando a senhora a tocou no braço, para seguirem em seu passeio. Fingindo não perceber o estado de sobressalto da sua acompanhante, a mulher começou a contar a história que sabia sobre aquele local. Tinha sido residência de uma conceituada família no século dezenove. Viveram ali um casal e uma filha e alguns empregados. Corria na região que a menina, filha do casal, foi mantida trancada no quarto após malsucedida história de amor com um dos empregados, que teve que fugir para não ser morto pelo pai, e que só uma empregada tinha contato com ela, levando-lhe as refeições e cuidando de sua higiene. Além disso, reza a lenda, fazia a troca de correspondências entre ela e o seu amado. As duas ficaram em silêncio por um tempo que pareceu ser dado pela narradora para que a história pudesse ser absorvida e, então, seguiram, uma contando e a outra apenas escutando.

A mulher continuou o relato de que contavam que o empregado fugitivo, um jovem rapaz na época, após anos e já um homem de posses que havia se tornado, voltou à cidade para resgatar sua amada, tendo sido ajudado pela empregada, que os acompanhou na fuga, pois, se ali ficasse, seria morta ao descobrirem a traição aos patrões. A mãe, ao saber da ida de sua filha, caiu em desgosto profundo e nunca mais saiu de casa; o pai mandou vasculhar toda a região atrás do casal, mas sem sucesso, o que o fez também cair em depressão. Após alguns anos de puro isolamento, os pais da jovem partiram dali e nunca mais se ouviu falar deles. A casa ficou abandonada por vários anos e passou a fazer parte do patrimônio da cidade, tendo sido construído então o hotel.

Já estavam retornando, pois a senhora parecia não ter mais nada a revelar, quando ela fez uma pausa e perguntou se a narradora saberia dizer se o hotel tinha conservado algumas partes da casa original e quais seriam. A resposta a deixou ainda mais confusa, embora em seu íntimo já soubesse. O quarto que ela estava ocupando foi a única parte da casa que foi mantida como original, pois estava praticamente intacto, apesar de todo o abandono, bem como os móveis do cômodo, que só precisaram de uma restauração. O jardim também foi totalmente aproveitado.

A noite foi longa, não conseguiu dormir com todas aquelas informações lhe revirando na cabeça, não entendia por que foi levada até aquele lugar, por que descobriu as cartas, as fotos. Muitos porquês sem respostas. Arrepiava-se só de pensar que estava dormindo no mesmo quarto onde foram escritas e lidas todas aquelas cartas, palco de lágrimas e esperança. Adormeceu sem sentir e, na manhã seguinte, ainda sem respostas a seus questionamentos, resolveu que já era hora de seguir sua viagem. Sentia que, talvez, sua estada ali tivesse sido para lhe dizer que, por mais que a vida lhe force a mudar seu curso, tentando tirar o que de fato é seu, deveria seguir acreditando e lutando pelo que queria de verdade. Ainda sem saber bem o que deveria fazer, arrumou suas coisas, comtemplou as cartas e fotos e resolveu que não deveria levá-las, mas também não as deixaria ali, perdidas no fundo daquela gaveta.

Pagou a conta, arrumou sua pequena bagagem na mala do carro e, antes de pegar a estrada, foi fazer uma coisa que sentia que devia. Foi até a gruta que havia descoberto na caminhada do dia anterior e, não mais se incomodando com a vegetação úmida que cobria parte da entrada, entrou em seu interior. Era um lugar menos assustador do que parecia ser do lado de fora, ou seu olhar estava diferente, não sabia dizer e não estava preocupada em ter a resposta. Sentou-se em uma das pedras, contemplou o teto, que era bem alto, e as paredes, que eram igualmente de pedras e pareciam guardar uma energia incomum a todas que já havia sentido. Ficou ali por um tempo que não soube mensurar. Abriu, então, a bolsa que carregava, tirando de dentro as cartas e as fotos que resgatou do fundo falso da gaveta do armário e as colocou atrás de umas pequenas pedras e saiu em seguida, segura de que ali era o lugar delas.

Era uma tarde fria em Paris, o vento lhe fazia carinho no rosto anunciando que a estação que mais amava se aproximava. Andava pelas ruas admirando as folhas caídas das árvores, que faziam desenhos pelo chão e com a certeza de que ter voltado para viver a sua vida e dar a ela o curso que queria dar foi a melhor decisão que poderia ter tomado.