terça-feira, 7 de maio de 2019

A decisão

Era uma manhã fria de chuva fina e vento cortante. Não podia mais esperar, tinha que resolver o que vinha adiando há meses. Morgana saiu da cama, olhou-se no espelho e entrou no chuveiro para um demorado banho quente. Secou os cabelos, vestiu-se, tomou um café preto e forte, comeu duas torradas com mel e seguiu para seu destino.

No metro pensava o que diria quando entrasse na sala que todos, certamente, já deveriam estar a sua espera. Conforme o trem avançava seu coração apertava e quando chegou sua parada suas pernas pareciam pesar uma tonelada, foi realmente difícil sair e subir as escadas da estação que a levaram para frente do grande edifício central da Avenida 7. Morgana ficou parada na frente do prédio olhando para cima como se quisesse ver a sala que ficava no vigésimo terceiro andar, depois de alguns segundos que pareceram eternos, entrou no prédio e seguiu para o elevador. Subiu cada andar com o coração aos saltos. Ao chegar se anunciou na recepção e foi conduzida a grande sala de reunião onde todos já a esperavam. Foi recebida pelo velho Alfredo que a conduziu a um lugar reservado para ela.   “- Bom dia Morgana, queira sentar-se aqui, por favor. Café, água, suco, o que prefere¿” Fez um aceno de negação com a cabeça sentou, no local indicado, e abriu a pasta que trazia colocando alguns papéis sobre a mesa e dando bom dia a todos disse que estava pronta para começar a reunião.

Os dias se passaram com Morgana cada vez mais certa de que sua decisão foi a melhor que poderia tomar, apesar de estar lhe custando várias noites em claro a pensar nas consequências que poderá ter, mas que apesar do risco não lhe restou outra saída.

Alfredo estava preocupado, pois já era a terceira vez que ligava para o celular de Morgana e não conseguia falar com ela. Não queria insistir, nem tão pouco parecer invasivo, mas o velho advogado realmente gostava dela, a acompanhou desde a morte dos pais, em um trágico acidente de carro há dez anos. Sabia que seu compromisso com ela se extinguiu após a reunião naquela manhã chuvosa e tensa há três semanas, mas mesmo assim sentia-se na obrigação de zelar por seu bem estar. Ele não concordou com a decisão tomada por Morgana, mas tinha que respeitar e fez tudo para viabilizar o caminho escolhido por sua cliente.

Morgana estava agora com vinte e cinco anos, dez anos já haviam se passado daquela fatídica noite em que recebeu a notícia do acidente de carro sofrido pelos pais, que os levou a morte. Após a perda dos pais teve que ir morar com Endora, sua tia, irmã de Lasneu, seu pai. Endora era uma mulher de princípios fortes e achava que como a sobrinha estava sob seus cuidados, tinha que seguir as mesmas regras de educação que ela havia tido e isso foi realmente duro para menina que estava acostumada a uma vida cercada de carinhos e agora só tinha regras e ordens a seguir. Foi nessa época que Alfredo conheceu Morgana, pois fazia parte das determinações deixadas pelo pai para o caso de sua falta, que ele, que era advogado da família, a acompanhasse e cuidasse de todos os bens deixados para ela até que completasse vinte e cinco anos, quando poderia gerir ela mesma o que era seu. O calvário vivido ao lado da tia durou três anos, quando essa, para alivio de Morgana faleceu. A partir de então passou a viver sozinha na casa dos pais, que estava fechada desde a morte deles e só poderia ser passada a ela, como todos os outros bens após ter completado vinte e cinco anos, mas devido à morte da tia, Alfredo conseguiu viabilizar os documentos para que tomasse posse da casa, embora tenha continuado a gerir seus bens, como determinação legal. Mas ele a supria de tudo que precisava e muitas vezes fazia vista grossa para os critérios de liberação de recursos que deveriam seguir algumas normas. Ela ficou lá até completar vinte e um anos, quando fechou a casa e quis ir morar em um pequeno apartamento no centro da cidade, o que também custou a Alfredo alguns arranjos para liberação de verba para o aluguel, mas que como tudo que ela pedia, conseguiu dar um jeito. Ela havia começado a estudar moda, depois de ter abandonado a faculdade de direito no terceiro ano. O curso era no centro da cidade e ficava muito insatisfeita por não poder ficar nas conversas de pós aula para não perder o ultimo horário do trem de volta para casa. Alfredo havia se tornando mais que um advogado, era como um amigo mais velho, um conselheiro, embora nunca tenha conseguido convencê-la a deixar de fazer o que queria como foi o caso de largar a faculdade de direito após já ter cursado três anos e de ser uma excelente aluna. Nenhum dos argumentos usado pelo velho e bom amigo, como ela o chamava, foi capaz de fazê-la desistir da ideia. Mas com o passar do tempo, embora não admitisse para ela, Alfredo achou que tinha feito a escolha certa, pois nunca a tinha visto tão feliz e realizada. Mas já não podia dizer o mesmo da última decisão que a viu tomar.

Agora já de posse total de seus bens, podia dar vazão a seu desejo de vender a casa dos pais, o que antes, mesmo com todos os arranjos de Alfredo para satisfazer seus anseios, não era possível. Apesar de ter essa vontade desde que saiu da casa, sentiu um vazio quando finalmente concretizou a venda. Ali havia vivido uma parte feliz de sua vida e ao mesmo tempo a mais triste, que fora a perda dos pais. Outro desejo realizado foi a compra de um grande apartamento, também no centro da cidade, mas agora com espaço para montar seu próprio atelier. Estava feliz com suas novas conquistas, mas ainda bem aflita com o rumo que sua vida estava tomando, mas mesmo assim certa do que queria. E assim seguiu para viver sua vida com todos os desafios e riscos que sua decisão poderia ter, mas também com a satisfação de ter feito o que achava que era necessário, embora sem nunca ter tido a certeza de ter feito a melhor escolha.

sábado, 4 de maio de 2019

A Loja de doces


Era início da primavera em Lisboa, as árvores cumprimentavam a todos com seus galhos repletos de verdes folhas, o que anunciava que o inverno havia se retirado de cena. Durante toda semana o sol iluminou e aqueceu a cidade, que estava carente de seu calor, fora um inverno rigoroso naquele ano. Porém naquela manhã de quarta feira o dia começou de baixo de uma chuva fina e fria, mas nada a ponto de fazer com que Isabel desistisse de satisfazer seu desejo de caminhar até a loja de doces que ficava no final da rua. A loja havia ficado fechada durante todo o inverno, o que a impediu de desfrutar de um dos poucos prazeres que se permitia na vida, croissant com cobertura de amêndoas, mel e canela.

O cheiro das guloseimas feitas ali era inebriante, da esquina já se conseguia sentir o perfume dos doces que atraiam fregueses de toda parte. Isabel atravessou a porta fazendo o sino tocar avisando de sua chegada, trazendo Madalena da cozinha, a dona da loja para receber uma de suas mais assíduas clientes. “-Bom dia menina, o que vai ser hoje¿ Aposto que o mesmo de sempre, quantos vai querer¿” Madalena era uma velha mal humorada, estava sempre com o rosto e mãos engordurados, que limpava a todo tempo em um grande avental xadrez que trazia amarrado a cintura. Conhecia todos seus clientes pelo nome, sabia o gosto e preferência de cada um apesar de nunca travar com eles nenhum tipo de dialogo, a não ser um curto e formal bom dia ou boa tarde. Isabel ignorava a falta de simpatia e disposição para conversa de Madalena e sempre perguntava como estava passando, mesmo que ela não respondesse como fazia habitualmente e naquele dia não foi diferente. “-Sim Dona Madalena, o de sempre, meu delicioso croissant. Três... não, quatro, pode me dar um para comer agora e os outros para levar, por favor. Quase morri de tanta falta deles, todo o inverno ... ai nossa.” Isabel, como sempre tentava uma conversa com Madalena que a ignorava como fazia com todos. A velha doceira atendeu ao pedido, recebeu pagamento e quando já ia se retirar do balcão para retornar a cozinha foi impedida pela chegada de mais um cliente que entrou na loja esbaforido com guarda chuvas pingando deixando o chão todo respingado. “-Bom dia, por favor, aqui é a loja da Dona Madalena¿ Recebi a indicação de aqui são feitos os melhores croissants de toda Lisboa.” Isabel, que já estava de saída, parou e se voltou para o homem respondendo que com certeza eram os melhores da região e seguiu para casa para preparar um quente e fumegante café para tomar com suas delícias recém adquiridas. “-Diga lá quantos vai querer, são 1,20 cada.” Perguntou Madalena, do alto de seu habitual mau humor e falta de cordialidade, ao homem que permanecia parado na porta perdido entre a gentileza de Isabel, a rispidez da dona da loja e o delicioso aroma que o fez despertar e fazer seu pedido e sair em retirada. Eram assim os dias na loja de doces que encantavam a todos pelo seu sabor e aroma deliciosos, mas que tinham que enfrentar o mau humor de Madalena para ter direito as maravilhas que preparava. Sua falta de trato com os clientes já era quase tão conhecida quanto seus doces e em nada atrapalhava suas vendas, muito pelo contrario, já havia virado folclore na região, a velha amarga que vendia doces.

Isabel chegou em casa, fez um bule de café, sentou a mesa e saboreou cada pedacinho de sua riqueza, a cada mordida vinham-lhe a cabeça momentos agradáveis que já vivera. Era realmente um manjar dos Deuses, pensava como um simples doce podia trazer-lhe tão agradável sensação, já havia comido outros croissants muito saborosos, mas nada comparado aquele, parecia mesmo especial, o melhor da região, só não entendia como uma coisa tão saborosa podia ser feita por uma pessoa tão seca e amarga como Dona Madalena.

E os dias se passaram com a mesmo rotina, Isabel ia à loja todas as manhãs, sem sucesso falava com Dona Madalena, pagava pelos croissants e saia. Como ela, várias pessoas iam ali à busca da iguaria de cobertura de amêndoas, canela e mel, mas ninguém, além de Isabel, se preocupava em querer saber como uma mulher sem amor no coração, como aparentava ser Madalena, era capaz de fazer tal delícia.

Um dia ao sair da loja de doces, Isabel não se conteve e voltou da porta e bateu o sino, fazendo Madalena, que já estava no caminho de volta para cozinha, girar nos calcanhares para atender seu chamado, o que a deixou bem irritada, o que já era de se esperar, quando viu que era Isabel e não um novo cliente. “- Ora menina, o que queres, já não lhe atendi, esqueceu alguma coisa¿ Está a me fazer perder tempo, pois saibais que tenho muito o que...”  Para surpresa da velha, Isabel a interrompeu, a deixando com a fala no ar. De forma bem calma, como era de seu perfil, a menina a questionou. ”- Por que a senhora está sempre de cara amarrada e trata mal seus clientes¿ Sabe Dona Madalena, eu realmente não entendo como uma pessoa como a senhora, que parece estar de mal com a vida consegue fazer coisas tão deliciosas. Eu realmente não entendo. A senhora sabia que vêm pessoas de toda Lisboa para comprar seus doces¿ Acho mesmo que ninguém se importa, mas eu acho que deve ter alguma parte boa ai nesse seu coração que a senhora faz questão de esconder e deve ser essa parte que coloca nos doces.” Isabel saiu pela porta e se jogou no ar daquela manhã fresca de primavera de braços e peitos abertos  sentindo-se como tirado um peso dos ombros, já Madalena ficou parada no balcão da loja de boca entreaberta em um sentimento misto de raiva e espanto.


No dia seguinte, uma manhã clara e ensolarada, Isabel adentrou a loja de doces como era de costume e após o sino ter anunciado sua entrada Madalena veio da cozinha e quando deu de cara com a menina ficou surpresa, pois não esperava vê-la após o acontecido no dia anterior, mas fez um grande esforço para conter seu espanto o que foi inútil. Isabel fez questão de demonstrar nada ter percebido. “-Oh... o que vai ser hoje¿ O de sempre¿ Quantos¿ Algum para comer agora¿” A velha doceira parecia realmente estar nervosa, fazia várias perguntas e não encarava o olhar de Isabel que permanecia a fingir nada perceber e fez seu pedido habitual e um incomum, causando mais constrangimento a dona da loja que ansiava por vê-la sair. “-Ah... então além dos croissants hoje vou querer um mingau de sagu, para consumir aqui mesmo, bem quente e doce, por favor.” Isabel fez o pedido e sentou em uma mesa no fundo do salão e pegou o celular, mas apenas fingia olhar o aparelho enquanto observa Madalena suspirando e virando com tamanha rapidez em direção a cozinha que o chão de madeira estremeceu com seus pesados passos. Após cerca de 20 minutos um cheiro bom e doce banhava toda a loja e foi colocado na frente de Isabel um prato fundo de mingau de sagu. “-Veja se está a seu gosto, bem quente e doce como pediste. Não sabia que gostavas de mingau menina. Os croissants mais o mingau são 4,40, quando terminar podes deixar em cima da mesa, caso não precises de troco, ou me chamar, como queiras, bom apetite.” Agora o espanto era de Isabel, pois nunca, durante todos aqueles anos que frequentava a loja, tinha visto a velha doceira exercer nenhum tipo de dialogo com seus clientes, muito menos desejar-lhes bom apetite, realmente algo parecia ter acontecido. Comeu seu mingau, que como tudo ali era divino, deixou o dinheiro na mesa e saiu sem deixar aviso. Do canto da porta da cozinha a velha doceira observava sua cliente e pensava como uma rapariga magrela e desajeitada poderia ter lhe falado coisas tão desaforadas e ela não tomou nenhuma atitude e ainda a recebia em sua loja e a servia com o que tinha de melhor.