Era início da primavera em
Lisboa, as árvores cumprimentavam a todos com seus galhos repletos de verdes
folhas, o que anunciava que o inverno havia se retirado de cena. Durante toda
semana o sol iluminou e aqueceu a cidade, que estava carente de seu calor, fora
um inverno rigoroso naquele ano. Porém naquela manhã de quarta feira o dia
começou de baixo de uma chuva fina e fria, mas nada a ponto de fazer com que
Isabel desistisse de satisfazer seu desejo de caminhar até a loja de doces que
ficava no final da rua. A loja havia ficado fechada durante todo o inverno, o
que a impediu de desfrutar de um dos poucos prazeres que se permitia na vida, croissant
com cobertura de amêndoas, mel e canela.
O cheiro das guloseimas
feitas ali era inebriante, da esquina já se conseguia sentir o perfume dos
doces que atraiam fregueses de toda parte. Isabel atravessou a porta fazendo o
sino tocar avisando de sua chegada, trazendo Madalena da cozinha, a dona da
loja para receber uma de suas mais assíduas clientes. “-Bom dia menina, o que vai ser
hoje¿ Aposto que o mesmo de sempre, quantos vai querer¿” Madalena era
uma velha mal humorada, estava sempre com o rosto e mãos engordurados, que
limpava a todo tempo em um grande avental xadrez que trazia amarrado a cintura.
Conhecia todos seus clientes pelo nome, sabia o gosto e preferência de cada um apesar
de nunca travar com eles nenhum tipo de dialogo, a não ser um curto e formal
bom dia ou boa tarde. Isabel ignorava a falta de simpatia e disposição para
conversa de Madalena e sempre perguntava como estava passando, mesmo que ela
não respondesse como fazia habitualmente e naquele dia não foi diferente. “-Sim
Dona Madalena, o de sempre, meu delicioso croissant. Três... não, quatro, pode
me dar um para comer agora e os outros para levar, por favor. Quase morri de
tanta falta deles, todo o inverno ... ai nossa.” Isabel, como sempre
tentava uma conversa com Madalena que a ignorava como fazia com todos. A velha
doceira atendeu ao pedido, recebeu pagamento e quando já ia se retirar do
balcão para retornar a cozinha foi impedida pela chegada de mais um cliente que
entrou na loja esbaforido com guarda chuvas pingando deixando o chão todo
respingado. “-Bom dia, por favor, aqui é a loja da Dona Madalena¿ Recebi a
indicação de aqui são feitos os melhores croissants de toda Lisboa.” Isabel,
que já estava de saída, parou e se voltou para o homem respondendo que com
certeza eram os melhores da região e seguiu para casa para preparar um quente e
fumegante café para tomar com suas delícias recém adquiridas. “-Diga
lá quantos vai querer, são 1,20 cada.” Perguntou Madalena, do alto de
seu habitual mau humor e falta de cordialidade, ao homem que permanecia parado na
porta perdido entre a gentileza de Isabel, a rispidez da dona da loja e o
delicioso aroma que o fez despertar e fazer seu pedido e sair em retirada. Eram
assim os dias na loja de doces que encantavam a todos pelo seu sabor e aroma
deliciosos, mas que tinham que enfrentar o mau humor de Madalena para ter
direito as maravilhas que preparava. Sua falta de trato com os clientes já era
quase tão conhecida quanto seus doces e em nada atrapalhava suas vendas, muito
pelo contrario, já havia virado folclore na região, a velha amarga que vendia doces.
Isabel chegou em casa, fez
um bule de café, sentou a mesa e saboreou cada pedacinho de sua riqueza, a cada
mordida vinham-lhe a cabeça momentos agradáveis que já vivera. Era realmente um
manjar dos Deuses, pensava como um simples doce podia trazer-lhe tão agradável
sensação, já havia comido outros croissants muito saborosos, mas nada comparado
aquele, parecia mesmo especial, o melhor da região, só não entendia como uma
coisa tão saborosa podia ser feita por uma pessoa tão seca e amarga como Dona
Madalena.
E os dias se passaram com
a mesmo rotina, Isabel ia à loja todas as manhãs, sem sucesso falava com Dona Madalena,
pagava pelos croissants e saia. Como ela, várias pessoas iam ali à busca da
iguaria de cobertura de amêndoas, canela e mel, mas ninguém, além de Isabel, se
preocupava em querer saber como uma mulher sem amor no coração, como aparentava
ser Madalena, era capaz de fazer tal delícia.
Um dia ao sair da loja de
doces, Isabel não se conteve e voltou da porta e bateu o sino, fazendo Madalena,
que já estava no caminho de volta para cozinha, girar nos calcanhares para
atender seu chamado, o que a deixou bem irritada, o que já era de se esperar, quando
viu que era Isabel e não um novo cliente. “- Ora menina, o que queres, já não lhe
atendi, esqueceu alguma coisa¿ Está a me fazer perder tempo, pois saibais que
tenho muito o que...” Para
surpresa da velha, Isabel a interrompeu, a deixando com a fala no ar. De forma
bem calma, como era de seu perfil, a menina a questionou. ”- Por que a senhora está sempre
de cara amarrada e trata mal seus clientes¿ Sabe Dona Madalena, eu realmente
não entendo como uma pessoa como a senhora, que parece estar de mal com a vida consegue
fazer coisas tão deliciosas. Eu realmente não entendo. A senhora sabia que vêm pessoas de toda Lisboa para comprar seus doces¿ Acho mesmo que ninguém se
importa, mas eu acho que deve ter alguma parte boa ai nesse seu coração que a
senhora faz questão de esconder e deve ser essa parte que coloca nos doces.”
Isabel saiu pela porta e se jogou no ar daquela manhã fresca de primavera de
braços e peitos abertos sentindo-se como
tirado um peso dos ombros, já Madalena ficou parada no balcão da loja de boca
entreaberta em um sentimento misto de raiva e espanto.
No dia seguinte, uma manhã
clara e ensolarada, Isabel adentrou a loja de doces como era de costume e após
o sino ter anunciado sua entrada Madalena veio da cozinha e quando deu de cara
com a menina ficou surpresa, pois não esperava vê-la após o acontecido no dia
anterior, mas fez um grande esforço para conter seu espanto o que foi inútil.
Isabel fez questão de demonstrar nada ter percebido. “-Oh...
o que vai ser hoje¿ O de sempre¿ Quantos¿ Algum para comer agora¿” A
velha doceira parecia realmente estar nervosa, fazia várias perguntas e não
encarava o olhar de Isabel que permanecia a fingir nada perceber e fez seu
pedido habitual e um incomum, causando mais constrangimento a dona da loja que
ansiava por vê-la sair. “-Ah... então além dos croissants hoje vou
querer um mingau de sagu, para consumir aqui mesmo, bem quente e doce, por
favor.” Isabel fez o pedido e sentou em uma mesa no fundo do salão e
pegou o celular, mas apenas fingia olhar o aparelho enquanto observa Madalena
suspirando e virando com tamanha rapidez em direção a cozinha que o chão de
madeira estremeceu com seus pesados passos. Após cerca de 20 minutos um cheiro
bom e doce banhava toda a loja e foi colocado na frente de Isabel um prato
fundo de mingau de sagu. “-Veja se está
a seu gosto, bem quente e doce como pediste. Não sabia que gostavas de mingau
menina. Os croissants mais o mingau são 4,40, quando terminar podes deixar em
cima da mesa, caso não precises de troco, ou me chamar, como queiras, bom
apetite.” Agora o espanto era de Isabel, pois nunca, durante todos aqueles anos
que frequentava a loja, tinha visto a velha doceira exercer nenhum tipo de
dialogo com seus clientes, muito menos desejar-lhes bom apetite, realmente algo
parecia ter acontecido. Comeu seu mingau, que como tudo ali era divino, deixou
o dinheiro na mesa e saiu sem deixar aviso. Do canto da porta da cozinha a
velha doceira observava sua cliente e pensava como uma rapariga magrela e
desajeitada poderia ter lhe falado coisas tão desaforadas e ela não tomou
nenhuma atitude e ainda a recebia em sua loja e a servia com o que tinha de
melhor.
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