sábado, 4 de maio de 2019

A Loja de doces


Era início da primavera em Lisboa, as árvores cumprimentavam a todos com seus galhos repletos de verdes folhas, o que anunciava que o inverno havia se retirado de cena. Durante toda semana o sol iluminou e aqueceu a cidade, que estava carente de seu calor, fora um inverno rigoroso naquele ano. Porém naquela manhã de quarta feira o dia começou de baixo de uma chuva fina e fria, mas nada a ponto de fazer com que Isabel desistisse de satisfazer seu desejo de caminhar até a loja de doces que ficava no final da rua. A loja havia ficado fechada durante todo o inverno, o que a impediu de desfrutar de um dos poucos prazeres que se permitia na vida, croissant com cobertura de amêndoas, mel e canela.

O cheiro das guloseimas feitas ali era inebriante, da esquina já se conseguia sentir o perfume dos doces que atraiam fregueses de toda parte. Isabel atravessou a porta fazendo o sino tocar avisando de sua chegada, trazendo Madalena da cozinha, a dona da loja para receber uma de suas mais assíduas clientes. “-Bom dia menina, o que vai ser hoje¿ Aposto que o mesmo de sempre, quantos vai querer¿” Madalena era uma velha mal humorada, estava sempre com o rosto e mãos engordurados, que limpava a todo tempo em um grande avental xadrez que trazia amarrado a cintura. Conhecia todos seus clientes pelo nome, sabia o gosto e preferência de cada um apesar de nunca travar com eles nenhum tipo de dialogo, a não ser um curto e formal bom dia ou boa tarde. Isabel ignorava a falta de simpatia e disposição para conversa de Madalena e sempre perguntava como estava passando, mesmo que ela não respondesse como fazia habitualmente e naquele dia não foi diferente. “-Sim Dona Madalena, o de sempre, meu delicioso croissant. Três... não, quatro, pode me dar um para comer agora e os outros para levar, por favor. Quase morri de tanta falta deles, todo o inverno ... ai nossa.” Isabel, como sempre tentava uma conversa com Madalena que a ignorava como fazia com todos. A velha doceira atendeu ao pedido, recebeu pagamento e quando já ia se retirar do balcão para retornar a cozinha foi impedida pela chegada de mais um cliente que entrou na loja esbaforido com guarda chuvas pingando deixando o chão todo respingado. “-Bom dia, por favor, aqui é a loja da Dona Madalena¿ Recebi a indicação de aqui são feitos os melhores croissants de toda Lisboa.” Isabel, que já estava de saída, parou e se voltou para o homem respondendo que com certeza eram os melhores da região e seguiu para casa para preparar um quente e fumegante café para tomar com suas delícias recém adquiridas. “-Diga lá quantos vai querer, são 1,20 cada.” Perguntou Madalena, do alto de seu habitual mau humor e falta de cordialidade, ao homem que permanecia parado na porta perdido entre a gentileza de Isabel, a rispidez da dona da loja e o delicioso aroma que o fez despertar e fazer seu pedido e sair em retirada. Eram assim os dias na loja de doces que encantavam a todos pelo seu sabor e aroma deliciosos, mas que tinham que enfrentar o mau humor de Madalena para ter direito as maravilhas que preparava. Sua falta de trato com os clientes já era quase tão conhecida quanto seus doces e em nada atrapalhava suas vendas, muito pelo contrario, já havia virado folclore na região, a velha amarga que vendia doces.

Isabel chegou em casa, fez um bule de café, sentou a mesa e saboreou cada pedacinho de sua riqueza, a cada mordida vinham-lhe a cabeça momentos agradáveis que já vivera. Era realmente um manjar dos Deuses, pensava como um simples doce podia trazer-lhe tão agradável sensação, já havia comido outros croissants muito saborosos, mas nada comparado aquele, parecia mesmo especial, o melhor da região, só não entendia como uma coisa tão saborosa podia ser feita por uma pessoa tão seca e amarga como Dona Madalena.

E os dias se passaram com a mesmo rotina, Isabel ia à loja todas as manhãs, sem sucesso falava com Dona Madalena, pagava pelos croissants e saia. Como ela, várias pessoas iam ali à busca da iguaria de cobertura de amêndoas, canela e mel, mas ninguém, além de Isabel, se preocupava em querer saber como uma mulher sem amor no coração, como aparentava ser Madalena, era capaz de fazer tal delícia.

Um dia ao sair da loja de doces, Isabel não se conteve e voltou da porta e bateu o sino, fazendo Madalena, que já estava no caminho de volta para cozinha, girar nos calcanhares para atender seu chamado, o que a deixou bem irritada, o que já era de se esperar, quando viu que era Isabel e não um novo cliente. “- Ora menina, o que queres, já não lhe atendi, esqueceu alguma coisa¿ Está a me fazer perder tempo, pois saibais que tenho muito o que...”  Para surpresa da velha, Isabel a interrompeu, a deixando com a fala no ar. De forma bem calma, como era de seu perfil, a menina a questionou. ”- Por que a senhora está sempre de cara amarrada e trata mal seus clientes¿ Sabe Dona Madalena, eu realmente não entendo como uma pessoa como a senhora, que parece estar de mal com a vida consegue fazer coisas tão deliciosas. Eu realmente não entendo. A senhora sabia que vêm pessoas de toda Lisboa para comprar seus doces¿ Acho mesmo que ninguém se importa, mas eu acho que deve ter alguma parte boa ai nesse seu coração que a senhora faz questão de esconder e deve ser essa parte que coloca nos doces.” Isabel saiu pela porta e se jogou no ar daquela manhã fresca de primavera de braços e peitos abertos  sentindo-se como tirado um peso dos ombros, já Madalena ficou parada no balcão da loja de boca entreaberta em um sentimento misto de raiva e espanto.


No dia seguinte, uma manhã clara e ensolarada, Isabel adentrou a loja de doces como era de costume e após o sino ter anunciado sua entrada Madalena veio da cozinha e quando deu de cara com a menina ficou surpresa, pois não esperava vê-la após o acontecido no dia anterior, mas fez um grande esforço para conter seu espanto o que foi inútil. Isabel fez questão de demonstrar nada ter percebido. “-Oh... o que vai ser hoje¿ O de sempre¿ Quantos¿ Algum para comer agora¿” A velha doceira parecia realmente estar nervosa, fazia várias perguntas e não encarava o olhar de Isabel que permanecia a fingir nada perceber e fez seu pedido habitual e um incomum, causando mais constrangimento a dona da loja que ansiava por vê-la sair. “-Ah... então além dos croissants hoje vou querer um mingau de sagu, para consumir aqui mesmo, bem quente e doce, por favor.” Isabel fez o pedido e sentou em uma mesa no fundo do salão e pegou o celular, mas apenas fingia olhar o aparelho enquanto observa Madalena suspirando e virando com tamanha rapidez em direção a cozinha que o chão de madeira estremeceu com seus pesados passos. Após cerca de 20 minutos um cheiro bom e doce banhava toda a loja e foi colocado na frente de Isabel um prato fundo de mingau de sagu. “-Veja se está a seu gosto, bem quente e doce como pediste. Não sabia que gostavas de mingau menina. Os croissants mais o mingau são 4,40, quando terminar podes deixar em cima da mesa, caso não precises de troco, ou me chamar, como queiras, bom apetite.” Agora o espanto era de Isabel, pois nunca, durante todos aqueles anos que frequentava a loja, tinha visto a velha doceira exercer nenhum tipo de dialogo com seus clientes, muito menos desejar-lhes bom apetite, realmente algo parecia ter acontecido. Comeu seu mingau, que como tudo ali era divino, deixou o dinheiro na mesa e saiu sem deixar aviso. Do canto da porta da cozinha a velha doceira observava sua cliente e pensava como uma rapariga magrela e desajeitada poderia ter lhe falado coisas tão desaforadas e ela não tomou nenhuma atitude e ainda a recebia em sua loja e a servia com o que tinha de melhor. 

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