terça-feira, 2 de março de 2021

Memórias de um carnaval

 

(Este conto foi escrito com base em minhas memórias de adolescência de um lugar mágico onde passei verões memoráveis. Agradeço a minha amiga Tete, parceira de velhos carnavais pela ajuda nas lembranças e o incentivo que me deu para escrever este conto.)


Memórias de um carnaval

 

Cidade do interior, tranquila de irritar. Tão pequena que se podia percorrê-la de cabo a rabo em menos de um dia, e a pé. Poucos habitantes, todos se conheciam pelo nome, até os cachorros da rua eram velhos e fiéis parceiros dos moradores. Nada era novidade; tudo acontecia exatamente igual todos os dias, durante quase todo o ano, a não ser pelas férias de verão, que quebrava completamente a rotina do pacato e monótono local. A estação chegava ensolarada e, com ela, os jovens e animados veranistas que lotavam as praias paradisíacas do velho balneário, trazendo as novidades da cidade grande, que, embora a poucos quilômetros dali, parecia ficar em outro planeta, dada a realidade tão singular dos que ali viviam.

 

Os visitantes sentiam-se como os verdadeiros donos daquele pequeno lugar. Se pudessem, passariam a vida em eternas férias por ali. Chegavam com ânsia de saborear os dias mais esperados do ano, não se permitiam perder um só minuto. Grandes amizades e romances nasceram ali, alguns se perderam, mas muitos perduraram. As manhãs eram passadas na praia e as tardes e noites dividiam-se entre passeios pela cidade, com direito a paradas na pracinha da igreja e a da estação e o glamuroso Iate Clube, que servia de palco para inúmeras atividades, como os famosos bailes de carnaval.

A estrutura da cidade era reduzida, não comportava o acréscimo de visitantes que acontecia no verão, embora chegassem todos os anos e, portanto, não era novidade; eles já faziam parte da vida daquela pacata região. Mesmo assim, era a mesma coisa: faltava luz, água e até pão acabava na padaria. Mas nada abalava o brilho e a alegria; pelo contrário, cada minuto valia a pena. Os dias de sol passados na praia, com a areia que grudava no corpo e leva o resto do ano para sair por completo; os banhos de balde pegos nas casas dos vizinhos afortunados, que tinham mais de uma caixa d’água e conseguiam armazenar antes que a água da rua parasse de entrar e cediam para quem ficava na seca; as noites de lampião quando a luz acabava, proporcionando a visão do céu estrelado como purpurina. Esta era outra peculiaridade daquele lugar incrível, pois não havia no planeta outra visão de céu como aquela, um verdadeiro mar de prata que iluminava as noites inesquecíveis ao som do dedilhar dos violões dos jovens músicos que por ali passavam e deixavam sua marca embalando canções pela madrugada nos banquinhos da aconchegante pracinha da igreja.

Nas recordações da inesquecível cidade, não poderia deixar de lado os blocos de rua do evento mais esperado do verão, o carnaval. Eram verdadeiros encontros de amigos animados e felizes que aguardavam durante todo o ano e sentiam-se as criaturas mais felizes do mundo brincando debaixo do sol de escaldar e sujos, da cabeça aos pés, como era o caso de um dos ícones das festividades, que, literalmente, pintava seus integrantes com pedra de carvão. E a cereja do bolo: os bailes noturnos do Iate Clube. O verdadeiro nirvana, onde até as brigas, que aconteciam todos os anos, eram aguardadas com ansiedade e, claro, faziam parte dos comentários posteriores ao evento – aliás, como todos os outros episódios vividos ali. Poder-se-ia dizer que o resto do ano passado na cidade grande só servia de espera para aqueles dias de pura magia. O carnaval era realmente o ápice das férias de verão e foi em um desses eventos que nossa história se passou.

As fantasias eram elaboradas com o primor e cuidado que só os grandes acontecimentos merecem. Todos os detalhes eram importantes, nada poderia destoar do contesto final. Cada um dos participantes da grande festa queria estar lindo e perfeito para ser admirado e, acima de tudo, para se divertir e brincar o carnaval até o sol raiar. Assim, com as preparações das brilhantes fantasias, os dias que antecediam o mais esperado evento de verão se passavam, até que, finalmente, chegava o grande e aguardado momento.

 

O sábado de carnaval, dia de calor intenso, começou na praia, com os moradores de verão sentados em roda nas areias brilhantes e grudentas, a conversar ansiosos pelo primeiro dia do baile. A expectativa pelas fantasias era grande, pois ninguém sabia o que o outro usaria até a hora de se encontrarem para irem juntos ao baile – alguns, no entanto, só se veriam no meio do salão. E, finalmente, a lua despontava no céu estrelado, indicando que era chegada a hora de correrem para casa e começarem a montagem de seus personagens festivos.

A neta de um dos veranistas mais antigos da cidade estava se arrumando no quarto da pequena casa de seus avós, que ficava na rua principal. Com as janelas abertas, enquanto se preparava, podia ver o movimento que crescia dos passantes animados e fantasiados. Ela estava aflita, pois a luz havia acabado. Como o único lampião da casa estava sendo usado pela mãe, na sala, resolveu acender uma vela e colocar na janela. O quarto, como a casa, era de tamanho reduzido, com um sofá-cama de casal, onde dormiam os pais, um beliche, para a jovem e a irmã caçula, e o majestoso vovô, um armário antigo de uma porta, dividido em cabideiro, que precisava de escada para manuseá-lo, dado a altura elevada, uma gaveta na parte de baixo e um suntuoso espelho de cristal na parte de fora da porta do velho e estimado móvel.

A visibilidade era bem reduzida, mas ela seguiu se arrumando apressadamente, pois via que o movimento na rua estava aumentado em direção ao Iate, o que indicava que o baile estava prestes a começar, e queria estar lá para a primeira música, o que já era uma tradição. Achou melhor colocar a fantasia antes de prosseguir com a maquiagem e se escondeu atrás da porta, dado que a janela do quarto estava aberta em busca de melhor iluminação, e colocou sua vestimenta. Não conseguiu se ver muito bem, mas ficou parada na frente do espelho do velho armário, tentando entender como se sentia. Usava um colã rosa, meia-arrastão preta, sapatilhas prateadas e, complementando o traje, um adorno de grandes penas rosas e brancas na cabeça. Achou-se um pavão, mas, como estava sem muito tempo para análises, resolveu voltar à etapa da maquiagem, a qual julgava ser tão importante quanto à roupa. Passou base, pó compacto, blush, tudo quase que no tato, pois a visão era reduzida pela falta de luz, que ainda não tinha voltado, mas seguia na arrumação, dando graças aos céus que o Iate Clube contava com auxílio de gerador, o que não colocaria a festa em risco.

Já estava quase pronta, com o delineador bem marcado, como gostava e como o fez com todo cuidado; só faltava passar a máscara dos cílios, e o batom. Estava entre um rosa bem forte, para seguir o padrão da roupa, e um prateado. Ao segurar os dois na mão e esticar o braço na direção da vela para poder ver melhor, desajeitou-se e os deixou caírem no chão. Abaixou-se em seguida para pegá-los e, ao se levantar, esbarrou com as penas na vela acesa que estava na janela. Como o quarto estava na penumbra, as chamas vindas das penas logo chamaram atenção de uma das pessoas que passavam pela rua, que deu um grito e apontou na direção da casa. A neta do velho veranista continuava dentro do quarto, entretida na dúvida de qual batom usar, e nada tinha percebido e levou alguns segundos para ver que os gritos de pânico e os acenos da passante eram em relação a ela. Quando se virou e viu sua imagem no espelho, literalmente, com labaredas em cima cabeça, começou a gritar, chorar e a pular, o que atraiu outras pessoas que passavam na rua e que logo formaram uma pequena aglomeração para ver o que estava acontecendo. A essa altura, a mãe, que estava na sala, já tinha entrado correndo no quarto e dado de cara com aquela cena bizarra. Rapidamente, deu um voo em direção as penas, jogando-as no chão e pisando em cima para apagar o fogo. Diante daquela atitude de sua progenitora, a menina parou de chorar e até de se mexer, ficando imóvel, e se estabeleceu um silêncio ensurdecedor.

Na rua, as pessoas se amontoavam à beira do pequeno muro que separava a casa da calçada, querendo saber o que estava realmente acontecendo. Cada um que passava, e via o volume de gente parada, se aproximava e queria informações sobre o ocorrido e as notícias variavam; já estavam na vertente de que a mãe havia colocado fogo na fantasia da filha para não a deixar ir ao baile por algum motivo ainda desconhecido. Enquanto isso, dentro do quarto, a filha, finalmente, saiu de seu estado de inércia, se ajoelhou, pegou as penas, ou o que restaram delas, viu que tinha um buraco no meio e voltou a gritar, dizendo que estava tudo acabado e que sua tão aguardada noite de carnaval terminara antes de começar. Gritava e chorava e a mãe, sem saber o que fazer, tentava ajeitar as penas na cabeça na filha, sem sucesso.

A multidão crescia do lado de fora e, a essa altura, a notícia que corria era que a filha queria fugir com um dos membros da banda que tocaria no baile do Iate Clube e mãe estava tentando segurá-la em casa e já havia até colocado fogo em sua fantasia, mas nada estava conseguindo fazê-la desistir. E, no desespero, a menina atirou as penas pela janela no meio da multidão, que se acotovelava para pegá-las. De repente, a luz voltou e uma forte chuva veio com ela, o que ajudou a dispersar as pessoas.

A mãe, achando que tudo já estava resolvido, que a filha logo se recuperaria do susto e, no dia seguinte, estaria pronta para mais um dia de carnaval, concluiu que o melhor seria realmente uma boa noite de sono. Para acalmar os ânimos, saiu do quarto e fechou a porta. Mas a menina não compactuava com os pensamentos da mãe e resolveu que sua primeira noite de carnaval não poderia acabar assim e rapidamente trocou de roupa. Colocou um short preto com a bainha desfiada e uma miniblusa com paetês prateados que havia usado no carnaval passado, ficando somente com as meias e sapatilhas do traje original. Saiu do quarto dizendo que não perderia seu baile dos sonhos por nada, que não seria uma pena em chamas que estragaria seu evento favorito e mais aguardado do ano. Nem os apelos da mãe sobre a forte chuva que caía foi capaz de detê-la. Simplesmente passou a mão no guarda-chuva, que estava do lado de fora, encostado em uma pequena cerca de madeira feita para amparar a lata de lixo, e saiu batendo o portão.

Chegando ao Iate, deixou o guarda-chuva em um canto na entrada reservado para ele e seguiu em direção ao salão lotado. Havia perdido a abertura do baile, uma tradição que adorava participar, mas não queria mais desperdiçar suas energias com nada além de seu tão esperado carnaval, já bastavam os acontecimentos ocorridos antes de sua chegada ali; agora só queria brincar até o sol raiar. Mas, quando se preparava para finalmente adentrar o salão, viu uma cena inusitada para seus olhos: uma pessoa dançando em cima de uma mesa, com umas penas na cabeça, com uma abertura no meio. Foi se aproximando e, quando chegou perto, viu que era o seu arranjo de penas queimadas que a mulher em cima daquela mesa estava usando e não teve dúvidas: puxou uma cadeira, subiu em cima da mesa e, de um só puxão, arrancou da cabeça da melindrosa que as usava, perguntando como ela se atrevia a utilizar algo que não lhe pertencia, e as colocou em sua própria cabeça. Desceu da mesa com muita calma, sendo seguida pelos olhares de todos que a observavam sem nada dizer, inclusive da mulher que teve da cabeça as penas arrancadas. Em seguida, entrou no meio do seu tão esperado baile de carnaval e dançou até o sol raiar.

 


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