Era um
dia de sol quente, “céu de brigadeiro” ou algo assim, não sabia bem qual a
expressão usar ao certo para descrever aquele azul reluzente, sem nenhuma
marca, que levava o olhar até o infinito.
Dirigia
sem destino certo, sem ter para onde ir. Quando se deu conta, o sol já não mais
esquentava e o céu havia escurecido. Perguntou-se como não havia percebido o
tempo que estava na estrada e, com a súbita consciência do longo período
passado dentro do carro, veio a fome, a sede, o cansaço nas pernas e todas as
sensações de um corpo que grita após longas horas dentro de um veículo.
Resolveu, então, que era hora de parar e procurar algum lugar para passar a
noite; recuperar-se para seguir viagem na manhã seguinte. Perguntava-se para aonde
iria tendo em vista não saber ao certo onde estava quando avistou um posto de
gasolina à frente. Foi até ele em busca de informação e aproveitou para
abastecer e verificar as condições básicas do veículo. Desceu do carro enquanto
o frentista cuidava dele e entrou na pequena loja que ficava na parte de trás, comprou
água, alguns biscoitos e um sanduíche, que devorou em segundos. Tomou dois
cafés, pediu informações de algum hotel por perto, pagou e saiu. Ficou sentada
ainda por um tempo no pequeno banco encostado na porta do lado de fora da loja
enquanto tomava pequenos goles da garrafa de água que adquiriu. Levantou-se,
pagou ao rapaz pelo serviço, entrou no carro e seguiu para encontrar o hotel
que lhe informaram como sendo o único na região.
O hotel
lhe pareceu com uma boa aparência e aconchegante. Se bem que ela não sabia se
suas impressões eram realmente o que sentia ou estava sendo levada pelo fato de
ser o único na região e, portanto, não tinha opções, mas estava muito cansada
para ficar analisando suas reações. O que queria mesmo era um bom banho quente
e uma cama onde pudesse se esticar e dormir.
Mal tinha
encostado no sino, pendurado na parede do canto esquerdo do pequeno balcão para
ser tocado pelos os que ali chegavam em busca de atendimento, e um rapaz com um
sorriso largo surgiu parecendo ter brotado do nada, assustando-a um pouco, e
logo se colocou a atendê-la. Não havia muitos quartos disponíveis; na verdade,
só dois estavam vagos. Ela escolheu o que tinha vista para o mar, mesmo sendo
uma visão um pouco distante e sabendo que não teria nem tempo para admirações,
pois só queria dormir e sair bem cedo, na manhã seguinte. Optou por pagar um
pouco mais caro para sentir a energia que emanava dos ares marítimos. Pegou as
chaves do quarto 410 e, sem aceitar ajuda para levar sua bagagem, subiu as
escadas com sua pequena mala.
Ao entrar
no quarto, abriu a janela em busca das vibrações positivas que acreditava virem
dos ares do mar e ficou ali por uns segundos, mas logo a fechou, pois o ar
gélido da noite fria e escura invadia o quarto. Tirou as roupas, jogando-as em
um pequeno sofá encostado na parede em frente a cama, e entrou em um demorado e
merecido banho quente, indo para a cama em seguida.
Acordou
com a luz do sol que entrava pelas frestas laterais da janela e sentiu-se
aquecida e com uma sensação de bem-estar que há muito não experimentava. Ao
olhar o celular, sobre a mesinha de cabeceira ao lado da cama, assustou-se com
a hora e levantou-se de um pulo. Já passava das nove e, a essa altura, pretendia
já estar na estrada. Tomou um banho e, ao fim deste, já estava com uma outra
perspectiva. Sentou-se na beira da cama e começou a admirar o quarto, pequeno,
mas muito confortável e aconchegante. Passou a mão pelos lençóis, achando-os macios,
levou o travesseiro ao encontro do rosto, abraçando-o como se fosse um amigo
cheiroso, e pensou: “Por que tanta pressa, afinal não tenho destino certo nem
hora para chegar a lugar algum?”. Vestiu-se e desceu em busca de um merecido
café, pois acabara de se dar conta que estava faminta. Ao chegar à recepção,
foi recebida por uma agradável mulher de meia-idade que, antes mesmo de ser
solicitada, lhe conduziu ao salão de refeições onde uma farta mesa de café a
esperava. Sentou-se em uma das pequenas mesas e foi servida por um rapaz de
óculos e muito simpático. Comeu feito uma rainha e resolveu dar uma caminhada
até a praia que não ficava muito longe dali.
Voltou já
na hora do almoço, que era servido no mesmo salão do café, mas, apesar do aroma
maravilhoso, não quis comer, pois ainda não tinha fome devido ao farto café da manhã
que tomara há pouco tempo, e subiu decidida a arrumar suas coisas e partir. O
quarto tinha sido arrumado e exalava um cheiro de flores muito agradável. Sentia-se
como em um ambiente conhecido e bem familiar. Era como se já estivesse estado
ali. Resolveu, então, que passaria mais aquela noite e seguiria sua viagem na manhã
seguinte.
Não saiu
mais do quarto. Pediu uma sopa na hora do jantar, tomou um banho morno e tentou
dormir, sem sucesso. Levantou-se, abriu a janela e deixou o ar frio da noite a
abraçar. Ficou algum tempo admirando o céu estrelado e, de repente, achou que
tivesse sido chamada por uma voz. Virou-se assustada para dentro do quarto,
fechando a janela em seguida, mas não havia ninguém ali. Sacudiu a cabeça,
dizendo para si mesma que deveria ter escutado um som de algum animal e, quando
ia em direção à cama, olhou para o canto do quarto e viu um armário, que até
então não havia notado. Era um móvel antigo, composto de várias gavetas e achou
curioso como não o tinha visto antes. Ficou atraída por ele e, em um impulso de
curiosidade, pôs-se a abrir as gavetas. Estavam vazias. Mas a última, que era
mais funda do que as outras, quando aberta, teve a tábua de baixo levantada, o
que a estava impedindo de fechar de volta. Ao tentar ajeitar, viu que se
tratava de um fundo falso. Não teve dificuldades de removê-lo por completo,
pois a madeira já estava fraca, e quando a levantou deu de cara com várias
cartas amaradas com uma fita de cor indefinida, com as pontas rasgadas e fotos,
também unidas por material semelhante. Foi invadida por um sentimento misto de
querer abrir e de achar que não devia. Mas a curiosidade foi maior e, no instante seguinte, estava sentada na cama, lendo
as cartas e vendo as fotos. Deveriam ser bem antigas, o papel estava amarelado
e as fotos, além de gastas, eram de pessoas com vestes que mais pareciam de um
filme de época. Eram muitas e ela pensou de quem seriam, se foram esquecidas ou
estavam guardadas ali.
Passou a
noite entretida naquelas linhas, eram cartas de amor. Pareciam terem sido
trocadas entre duas pessoas que ficaram separadas por um longo tempo contra a vontade.
Confidências, lamentos de uma vida passada a distância, projetos, sonhos de um
futuro que não tinha como saber se foram realizados. Ficou penalizada por eles,
pelo sofrimento e amor colocado ali; parecia sentir a dor deles. Já era
madrugada quando deixou um pouco as cartas de lado e pegou as fotos. Pareciam
pessoas conhecidas, próximas, mas sabia que não poderiam ser, pois eram muito
antigas, de uma época muito distante. Não conseguiu pregar os olhos e, quando
se deu conta, o sol começava a dar os primeiros sinais de que o dia havia
chegado. Estava como se não tivesse passado a noite em claro; sentia-se bem-disposta.
Juntou as
cartas e as fotos, mas não as colocou de volta onde as encontrou. Sentia que
não conseguiria mais deixá-las ali e as guardou junto com as suas coisas. Tomou
um demorado banho e saiu para caminhar. Sua intenção era de ir em direção à
praia, mas, quando percebeu, estava na frente de uma pequena gruta. Não sabia
como havia chegado ali e aproximou-se para ver mais de perto. A entrada estava
coberta com uma vegetação úmida de aspecto não muito agradável, o que a
incomodou e a fez desistir da ideia de explorar o interior. Achou que se
tratava do lugar de despedida descrito em uma das cartas, daquelas duas pessoas
apaixonadas que ela sentia como se as conhecessem. Começou a sentir a respiração
ofegante e resolveu que era melhor voltar ao hotel.
Entrou
apressadamente e foi direto para o lavado que tinha ao lado do salão onde
estava sendo servido o café. Jogou água fria no rosto e na nuca, deixando-a
escorrer pelas costas, e ficou por alguns minutos olhando-se no espelho,
perguntando o que ainda estava fazendo naquele lugar, mas sacudiu a cabeça como
não querendo ouvir a resposta e saiu. Foi para o salão, sentou-se à mesma mesa
da manhã do dia anterior. Fez sua refeição calmamente, mas não conseguia parar
de pensar nas cartas, nas imagens das pessoas nas fotos que ela poderia jurar
que conhecia e no passeio que a levou aquele lugar desconhecido e misterioso
para ela.
Quem
seriam aquelas pessoas? Por que achava que as conhecia? Perguntas lhe invadiam
e, por alguma razão, ainda desconhecida, tinha que descobrir. Foi até a
recepção e procurou saber se havia alguma fonte de informação a respeito da história
daquele lugar, de sua origem, do que havia existido ali antes do hotel. A
senhora que estava atrás do balcão a olhou com ar simpático, observando-a por
alguns segundos, e perguntou por que estava interessada. Ela respondeu que
estava atraída pela energia daquele lugar por uma razão que não sabia explicar.
A mulher lhe pediu que a esperasse um instante e chamou um rapaz pelo telefone
interno, para ficar na recepção em seu lugar.
As duas
foram dar uma volta no jardim da propriedade, que, como o hotel, era lindo e
parecia guardar segredos, e chamou sua atenção o fato de não ter notado aquela
parte do local até aquele momento. Sentiu como estivesse passando por ali pela
primeira vez e um arrepio percorreu-lhe o corpo e levou um susto quando a
senhora a tocou no braço, para seguirem em seu passeio. Fingindo não perceber o
estado de sobressalto da sua acompanhante, a mulher começou a contar a história
que sabia sobre aquele local. Tinha sido residência de uma conceituada família no
século dezenove. Viveram ali um casal e uma filha e alguns empregados. Corria
na região que a menina, filha do casal, foi mantida trancada no quarto após malsucedida
história de amor com um dos empregados, que teve que fugir para não ser morto
pelo pai, e que só uma empregada tinha contato com ela, levando-lhe as
refeições e cuidando de sua higiene. Além disso, reza a lenda, fazia a troca de
correspondências entre ela e o seu amado. As duas ficaram em silêncio por um
tempo que pareceu ser dado pela narradora para que a história pudesse ser
absorvida e, então, seguiram, uma contando e a outra apenas escutando.
A mulher
continuou o relato de que contavam que o empregado fugitivo, um jovem rapaz na
época, após anos e já um homem de posses que havia se tornado, voltou à cidade
para resgatar sua amada, tendo sido ajudado pela empregada, que os acompanhou
na fuga, pois, se ali ficasse, seria morta ao descobrirem a traição aos patrões.
A mãe, ao saber da ida de sua filha, caiu em desgosto profundo e nunca mais saiu
de casa; o pai mandou vasculhar toda a região atrás do casal, mas sem sucesso,
o que o fez também cair em depressão. Após alguns anos de puro isolamento, os
pais da jovem partiram dali e nunca mais se ouviu falar deles. A casa ficou
abandonada por vários anos e passou a fazer parte do patrimônio da cidade,
tendo sido construído então o hotel.
Já
estavam retornando, pois a senhora parecia não ter mais nada a revelar, quando
ela fez uma pausa e perguntou se a narradora saberia dizer se o hotel tinha conservado
algumas partes da casa original e quais seriam. A resposta a deixou ainda mais
confusa, embora em seu íntimo já soubesse. O quarto que ela estava ocupando foi
a única parte da casa que foi mantida como original, pois estava praticamente
intacto, apesar de todo o abandono, bem como os móveis do cômodo, que só precisaram
de uma restauração. O jardim também foi totalmente aproveitado.
A noite
foi longa, não conseguiu dormir com todas aquelas informações lhe revirando na
cabeça, não entendia por que foi levada até aquele lugar, por que descobriu as
cartas, as fotos. Muitos porquês sem respostas. Arrepiava-se só de pensar que
estava dormindo no mesmo quarto onde foram escritas e lidas todas aquelas
cartas, palco de lágrimas e esperança. Adormeceu sem sentir e, na manhã
seguinte, ainda sem respostas a seus questionamentos, resolveu que já era hora
de seguir sua viagem. Sentia que, talvez, sua estada ali tivesse sido para lhe
dizer que, por mais que a vida lhe force a mudar seu curso, tentando tirar o
que de fato é seu, deveria seguir acreditando e lutando pelo que queria de
verdade. Ainda sem saber bem o que deveria fazer, arrumou suas coisas,
comtemplou as cartas e fotos e resolveu que não deveria levá-las, mas também
não as deixaria ali, perdidas no fundo daquela gaveta.
Pagou a
conta, arrumou sua pequena bagagem na mala do carro e, antes de pegar a
estrada, foi fazer uma coisa que sentia que devia. Foi até a gruta que havia
descoberto na caminhada do dia anterior e, não mais se incomodando com a
vegetação úmida que cobria parte da entrada, entrou em seu interior. Era um
lugar menos assustador do que parecia ser do lado de fora, ou seu olhar estava
diferente, não sabia dizer e não estava preocupada em ter a resposta. Sentou-se
em uma das pedras, contemplou o teto, que era bem alto, e as paredes, que eram
igualmente de pedras e pareciam guardar uma energia incomum a todas que já
havia sentido. Ficou ali por um tempo que não soube mensurar. Abriu, então, a
bolsa que carregava, tirando de dentro as cartas e as fotos que resgatou do
fundo falso da gaveta do armário e as colocou atrás de umas pequenas pedras e
saiu em seguida, segura de que ali era o lugar delas.
Era uma tarde
fria em Paris, o vento lhe fazia carinho no rosto anunciando que a estação que
mais amava se aproximava. Andava pelas ruas admirando as folhas caídas das árvores,
que faziam desenhos pelo chão e com a certeza de que ter voltado para viver a
sua vida e dar a ela o curso que queria dar foi a melhor decisão que poderia
ter tomado.