sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Somos todos iguais

                                                 (Inspirado na Ilha das flores de Jorge Furtado)

José Carlos era médico e atendia seus pacientes no centro da cidade. Genilson era baleiro e vendia sua mercadoria em uma barraca na frente da portaria do mesmo prédio em que o doutor tinha consultório.

Os dois homens cumprimentavam-se todos os dias e às vezes o médico parava para comprar algumas balas e conversar um pouco.

O vendedor tinha um filho com problemas de saúde e pediu ajuda ao doutor, que o mandou levá-lo ao seu consultório, onde daria uma olhada sem custo. O homem, emocionado, tentou beijar as mãos de José Carlos que recuou dizendo que não havia necessidade de agradecimentos, que era médico por vocação, honrava o juramento de Hipócrates e que para ele todos eram iguais. Genilson, não entendeu bem, mas ficou feliz.

O médico saía pela porta dos fundos todas as vezes que a secretária informava que o vendedor o estava esperando com o filho, mandando que dissesse para voltar outro dia.

Hipócrates foi um médico grego que viveu antes de Cristo e foi considerado o pai da medicina ocidental. Acredita-se que o juramento tenha sido escrito pelo próprio Hipócrates ou por um de seus alunos e é feito pelos médicos, tradicionalmente na ocasião da formatura, onde juram exercer a medicina de forma honesta e que o bem-estar do doente estará sempre em primeiro lugar.


O vendedor não desistiu de levar seu filho ao consultório e um dia foi finalmente atendido. O doutor o examinou, fez umas perguntas e doou algumas amostras de medicamentos vencidos, que estavam separadas para serem descartadas. O baleiro não se importou com a data de validade dos remédios. Sentiu-se muito grato e no dia seguinte, pela manhã, voltou para deixar de presente um pacote da melhor bala que tinha em sua barraca como agradecimento.

Remédios fora da validade podem não ter efeito ou fazer mal à saúde causando danos piores que os da doença original. Não devem ser consumidos em hipótese alguma por ninguém. 

Os remédios considerados pelo médico como inapropriados para os clientes que frequentavam seu consultório foram colocados à disposição do filho do vendedor de balas.  Um médico é o profissional que cuida da saúde das pessoas e que, para tanto, precisa jurar exercer a medicina de forma honesta e tratar todos os seus pacientes de forma igual.

O que diferenciava o baleiro e seu filho dos outros clientes era o fato de não possuírem dinheiro. E o que os diferenciava do médico era acreditarem que ele tratava a todos como iguais.

terça-feira, 6 de abril de 2021

Quarto 410

 

Era um dia de sol quente, “céu de brigadeiro” ou algo assim, não sabia bem qual a expressão usar ao certo para descrever aquele azul reluzente, sem nenhuma marca, que levava o olhar até o infinito.

Dirigia sem destino certo, sem ter para onde ir. Quando se deu conta, o sol já não mais esquentava e o céu havia escurecido. Perguntou-se como não havia percebido o tempo que estava na estrada e, com a súbita consciência do longo período passado dentro do carro, veio a fome, a sede, o cansaço nas pernas e todas as sensações de um corpo que grita após longas horas dentro de um veículo. Resolveu, então, que era hora de parar e procurar algum lugar para passar a noite; recuperar-se para seguir viagem na manhã seguinte. Perguntava-se para aonde iria tendo em vista não saber ao certo onde estava quando avistou um posto de gasolina à frente. Foi até ele em busca de informação e aproveitou para abastecer e verificar as condições básicas do veículo. Desceu do carro enquanto o frentista cuidava dele e entrou na pequena loja que ficava na parte de trás, comprou água, alguns biscoitos e um sanduíche, que devorou em segundos. Tomou dois cafés, pediu informações de algum hotel por perto, pagou e saiu. Ficou sentada ainda por um tempo no pequeno banco encostado na porta do lado de fora da loja enquanto tomava pequenos goles da garrafa de água que adquiriu. Levantou-se, pagou ao rapaz pelo serviço, entrou no carro e seguiu para encontrar o hotel que lhe informaram como sendo o único na região.

 

O hotel lhe pareceu com uma boa aparência e aconchegante. Se bem que ela não sabia se suas impressões eram realmente o que sentia ou estava sendo levada pelo fato de ser o único na região e, portanto, não tinha opções, mas estava muito cansada para ficar analisando suas reações. O que queria mesmo era um bom banho quente e uma cama onde pudesse se esticar e dormir.

 

Mal tinha encostado no sino, pendurado na parede do canto esquerdo do pequeno balcão para ser tocado pelos os que ali chegavam em busca de atendimento, e um rapaz com um sorriso largo surgiu parecendo ter brotado do nada, assustando-a um pouco, e logo se colocou a atendê-la. Não havia muitos quartos disponíveis; na verdade, só dois estavam vagos. Ela escolheu o que tinha vista para o mar, mesmo sendo uma visão um pouco distante e sabendo que não teria nem tempo para admirações, pois só queria dormir e sair bem cedo, na manhã seguinte. Optou por pagar um pouco mais caro para sentir a energia que emanava dos ares marítimos. Pegou as chaves do quarto 410 e, sem aceitar ajuda para levar sua bagagem, subiu as escadas com sua pequena mala.

Ao entrar no quarto, abriu a janela em busca das vibrações positivas que acreditava virem dos ares do mar e ficou ali por uns segundos, mas logo a fechou, pois o ar gélido da noite fria e escura invadia o quarto. Tirou as roupas, jogando-as em um pequeno sofá encostado na parede em frente a cama, e entrou em um demorado e merecido banho quente, indo para a cama em seguida.

Acordou com a luz do sol que entrava pelas frestas laterais da janela e sentiu-se aquecida e com uma sensação de bem-estar que há muito não experimentava. Ao olhar o celular, sobre a mesinha de cabeceira ao lado da cama, assustou-se com a hora e levantou-se de um pulo. Já passava das nove e, a essa altura, pretendia já estar na estrada. Tomou um banho e, ao fim deste, já estava com uma outra perspectiva. Sentou-se na beira da cama e começou a admirar o quarto, pequeno, mas muito confortável e aconchegante. Passou a mão pelos lençóis, achando-os macios, levou o travesseiro ao encontro do rosto, abraçando-o como se fosse um amigo cheiroso, e pensou: “Por que tanta pressa, afinal não tenho destino certo nem hora para chegar a lugar algum?”. Vestiu-se e desceu em busca de um merecido café, pois acabara de se dar conta que estava faminta. Ao chegar à recepção, foi recebida por uma agradável mulher de meia-idade que, antes mesmo de ser solicitada, lhe conduziu ao salão de refeições onde uma farta mesa de café a esperava. Sentou-se em uma das pequenas mesas e foi servida por um rapaz de óculos e muito simpático. Comeu feito uma rainha e resolveu dar uma caminhada até a praia que não ficava muito longe dali.

Voltou já na hora do almoço, que era servido no mesmo salão do café, mas, apesar do aroma maravilhoso, não quis comer, pois ainda não tinha fome devido ao farto café da manhã que tomara há pouco tempo, e subiu decidida a arrumar suas coisas e partir. O quarto tinha sido arrumado e exalava um cheiro de flores muito agradável. Sentia-se como em um ambiente conhecido e bem familiar. Era como se já estivesse estado ali. Resolveu, então, que passaria mais aquela noite e seguiria sua viagem na manhã seguinte.

Não saiu mais do quarto. Pediu uma sopa na hora do jantar, tomou um banho morno e tentou dormir, sem sucesso. Levantou-se, abriu a janela e deixou o ar frio da noite a abraçar. Ficou algum tempo admirando o céu estrelado e, de repente, achou que tivesse sido chamada por uma voz. Virou-se assustada para dentro do quarto, fechando a janela em seguida, mas não havia ninguém ali. Sacudiu a cabeça, dizendo para si mesma que deveria ter escutado um som de algum animal e, quando ia em direção à cama, olhou para o canto do quarto e viu um armário, que até então não havia notado. Era um móvel antigo, composto de várias gavetas e achou curioso como não o tinha visto antes. Ficou atraída por ele e, em um impulso de curiosidade, pôs-se a abrir as gavetas. Estavam vazias. Mas a última, que era mais funda do que as outras, quando aberta, teve a tábua de baixo levantada, o que a estava impedindo de fechar de volta. Ao tentar ajeitar, viu que se tratava de um fundo falso. Não teve dificuldades de removê-lo por completo, pois a madeira já estava fraca, e quando a levantou deu de cara com várias cartas amaradas com uma fita de cor indefinida, com as pontas rasgadas e fotos, também unidas por material semelhante. Foi invadida por um sentimento misto de querer abrir e de achar que não devia. Mas a curiosidade foi maior e, no instante seguinte, estava sentada na cama, lendo as cartas e vendo as fotos. Deveriam ser bem antigas, o papel estava amarelado e as fotos, além de gastas, eram de pessoas com vestes que mais pareciam de um filme de época. Eram muitas e ela pensou de quem seriam, se foram esquecidas ou estavam guardadas ali.

Passou a noite entretida naquelas linhas, eram cartas de amor. Pareciam terem sido trocadas entre duas pessoas que ficaram separadas por um longo tempo contra a vontade. Confidências, lamentos de uma vida passada a distância, projetos, sonhos de um futuro que não tinha como saber se foram realizados. Ficou penalizada por eles, pelo sofrimento e amor colocado ali; parecia sentir a dor deles. Já era madrugada quando deixou um pouco as cartas de lado e pegou as fotos. Pareciam pessoas conhecidas, próximas, mas sabia que não poderiam ser, pois eram muito antigas, de uma época muito distante. Não conseguiu pregar os olhos e, quando se deu conta, o sol começava a dar os primeiros sinais de que o dia havia chegado. Estava como se não tivesse passado a noite em claro; sentia-se bem-disposta.

Juntou as cartas e as fotos, mas não as colocou de volta onde as encontrou. Sentia que não conseguiria mais deixá-las ali e as guardou junto com as suas coisas. Tomou um demorado banho e saiu para caminhar. Sua intenção era de ir em direção à praia, mas, quando percebeu, estava na frente de uma pequena gruta. Não sabia como havia chegado ali e aproximou-se para ver mais de perto. A entrada estava coberta com uma vegetação úmida de aspecto não muito agradável, o que a incomodou e a fez desistir da ideia de explorar o interior. Achou que se tratava do lugar de despedida descrito em uma das cartas, daquelas duas pessoas apaixonadas que ela sentia como se as conhecessem. Começou a sentir a respiração ofegante e resolveu que era melhor voltar ao hotel.

Entrou apressadamente e foi direto para o lavado que tinha ao lado do salão onde estava sendo servido o café. Jogou água fria no rosto e na nuca, deixando-a escorrer pelas costas, e ficou por alguns minutos olhando-se no espelho, perguntando o que ainda estava fazendo naquele lugar, mas sacudiu a cabeça como não querendo ouvir a resposta e saiu. Foi para o salão, sentou-se à mesma mesa da manhã do dia anterior. Fez sua refeição calmamente, mas não conseguia parar de pensar nas cartas, nas imagens das pessoas nas fotos que ela poderia jurar que conhecia e no passeio que a levou aquele lugar desconhecido e misterioso para ela.

Quem seriam aquelas pessoas? Por que achava que as conhecia? Perguntas lhe invadiam e, por alguma razão, ainda desconhecida, tinha que descobrir. Foi até a recepção e procurou saber se havia alguma fonte de informação a respeito da história daquele lugar, de sua origem, do que havia existido ali antes do hotel. A senhora que estava atrás do balcão a olhou com ar simpático, observando-a por alguns segundos, e perguntou por que estava interessada. Ela respondeu que estava atraída pela energia daquele lugar por uma razão que não sabia explicar. A mulher lhe pediu que a esperasse um instante e chamou um rapaz pelo telefone interno, para ficar na recepção em seu lugar.

As duas foram dar uma volta no jardim da propriedade, que, como o hotel, era lindo e parecia guardar segredos, e chamou sua atenção o fato de não ter notado aquela parte do local até aquele momento. Sentiu como estivesse passando por ali pela primeira vez e um arrepio percorreu-lhe o corpo e levou um susto quando a senhora a tocou no braço, para seguirem em seu passeio. Fingindo não perceber o estado de sobressalto da sua acompanhante, a mulher começou a contar a história que sabia sobre aquele local. Tinha sido residência de uma conceituada família no século dezenove. Viveram ali um casal e uma filha e alguns empregados. Corria na região que a menina, filha do casal, foi mantida trancada no quarto após malsucedida história de amor com um dos empregados, que teve que fugir para não ser morto pelo pai, e que só uma empregada tinha contato com ela, levando-lhe as refeições e cuidando de sua higiene. Além disso, reza a lenda, fazia a troca de correspondências entre ela e o seu amado. As duas ficaram em silêncio por um tempo que pareceu ser dado pela narradora para que a história pudesse ser absorvida e, então, seguiram, uma contando e a outra apenas escutando.

A mulher continuou o relato de que contavam que o empregado fugitivo, um jovem rapaz na época, após anos e já um homem de posses que havia se tornado, voltou à cidade para resgatar sua amada, tendo sido ajudado pela empregada, que os acompanhou na fuga, pois, se ali ficasse, seria morta ao descobrirem a traição aos patrões. A mãe, ao saber da ida de sua filha, caiu em desgosto profundo e nunca mais saiu de casa; o pai mandou vasculhar toda a região atrás do casal, mas sem sucesso, o que o fez também cair em depressão. Após alguns anos de puro isolamento, os pais da jovem partiram dali e nunca mais se ouviu falar deles. A casa ficou abandonada por vários anos e passou a fazer parte do patrimônio da cidade, tendo sido construído então o hotel.

Já estavam retornando, pois a senhora parecia não ter mais nada a revelar, quando ela fez uma pausa e perguntou se a narradora saberia dizer se o hotel tinha conservado algumas partes da casa original e quais seriam. A resposta a deixou ainda mais confusa, embora em seu íntimo já soubesse. O quarto que ela estava ocupando foi a única parte da casa que foi mantida como original, pois estava praticamente intacto, apesar de todo o abandono, bem como os móveis do cômodo, que só precisaram de uma restauração. O jardim também foi totalmente aproveitado.

A noite foi longa, não conseguiu dormir com todas aquelas informações lhe revirando na cabeça, não entendia por que foi levada até aquele lugar, por que descobriu as cartas, as fotos. Muitos porquês sem respostas. Arrepiava-se só de pensar que estava dormindo no mesmo quarto onde foram escritas e lidas todas aquelas cartas, palco de lágrimas e esperança. Adormeceu sem sentir e, na manhã seguinte, ainda sem respostas a seus questionamentos, resolveu que já era hora de seguir sua viagem. Sentia que, talvez, sua estada ali tivesse sido para lhe dizer que, por mais que a vida lhe force a mudar seu curso, tentando tirar o que de fato é seu, deveria seguir acreditando e lutando pelo que queria de verdade. Ainda sem saber bem o que deveria fazer, arrumou suas coisas, comtemplou as cartas e fotos e resolveu que não deveria levá-las, mas também não as deixaria ali, perdidas no fundo daquela gaveta.

Pagou a conta, arrumou sua pequena bagagem na mala do carro e, antes de pegar a estrada, foi fazer uma coisa que sentia que devia. Foi até a gruta que havia descoberto na caminhada do dia anterior e, não mais se incomodando com a vegetação úmida que cobria parte da entrada, entrou em seu interior. Era um lugar menos assustador do que parecia ser do lado de fora, ou seu olhar estava diferente, não sabia dizer e não estava preocupada em ter a resposta. Sentou-se em uma das pedras, contemplou o teto, que era bem alto, e as paredes, que eram igualmente de pedras e pareciam guardar uma energia incomum a todas que já havia sentido. Ficou ali por um tempo que não soube mensurar. Abriu, então, a bolsa que carregava, tirando de dentro as cartas e as fotos que resgatou do fundo falso da gaveta do armário e as colocou atrás de umas pequenas pedras e saiu em seguida, segura de que ali era o lugar delas.

Era uma tarde fria em Paris, o vento lhe fazia carinho no rosto anunciando que a estação que mais amava se aproximava. Andava pelas ruas admirando as folhas caídas das árvores, que faziam desenhos pelo chão e com a certeza de que ter voltado para viver a sua vida e dar a ela o curso que queria dar foi a melhor decisão que poderia ter tomado.

terça-feira, 2 de março de 2021

Memórias de um carnaval

 

(Este conto foi escrito com base em minhas memórias de adolescência de um lugar mágico onde passei verões memoráveis. Agradeço a minha amiga Tete, parceira de velhos carnavais pela ajuda nas lembranças e o incentivo que me deu para escrever este conto.)


Memórias de um carnaval

 

Cidade do interior, tranquila de irritar. Tão pequena que se podia percorrê-la de cabo a rabo em menos de um dia, e a pé. Poucos habitantes, todos se conheciam pelo nome, até os cachorros da rua eram velhos e fiéis parceiros dos moradores. Nada era novidade; tudo acontecia exatamente igual todos os dias, durante quase todo o ano, a não ser pelas férias de verão, que quebrava completamente a rotina do pacato e monótono local. A estação chegava ensolarada e, com ela, os jovens e animados veranistas que lotavam as praias paradisíacas do velho balneário, trazendo as novidades da cidade grande, que, embora a poucos quilômetros dali, parecia ficar em outro planeta, dada a realidade tão singular dos que ali viviam.

 

Os visitantes sentiam-se como os verdadeiros donos daquele pequeno lugar. Se pudessem, passariam a vida em eternas férias por ali. Chegavam com ânsia de saborear os dias mais esperados do ano, não se permitiam perder um só minuto. Grandes amizades e romances nasceram ali, alguns se perderam, mas muitos perduraram. As manhãs eram passadas na praia e as tardes e noites dividiam-se entre passeios pela cidade, com direito a paradas na pracinha da igreja e a da estação e o glamuroso Iate Clube, que servia de palco para inúmeras atividades, como os famosos bailes de carnaval.

A estrutura da cidade era reduzida, não comportava o acréscimo de visitantes que acontecia no verão, embora chegassem todos os anos e, portanto, não era novidade; eles já faziam parte da vida daquela pacata região. Mesmo assim, era a mesma coisa: faltava luz, água e até pão acabava na padaria. Mas nada abalava o brilho e a alegria; pelo contrário, cada minuto valia a pena. Os dias de sol passados na praia, com a areia que grudava no corpo e leva o resto do ano para sair por completo; os banhos de balde pegos nas casas dos vizinhos afortunados, que tinham mais de uma caixa d’água e conseguiam armazenar antes que a água da rua parasse de entrar e cediam para quem ficava na seca; as noites de lampião quando a luz acabava, proporcionando a visão do céu estrelado como purpurina. Esta era outra peculiaridade daquele lugar incrível, pois não havia no planeta outra visão de céu como aquela, um verdadeiro mar de prata que iluminava as noites inesquecíveis ao som do dedilhar dos violões dos jovens músicos que por ali passavam e deixavam sua marca embalando canções pela madrugada nos banquinhos da aconchegante pracinha da igreja.

Nas recordações da inesquecível cidade, não poderia deixar de lado os blocos de rua do evento mais esperado do verão, o carnaval. Eram verdadeiros encontros de amigos animados e felizes que aguardavam durante todo o ano e sentiam-se as criaturas mais felizes do mundo brincando debaixo do sol de escaldar e sujos, da cabeça aos pés, como era o caso de um dos ícones das festividades, que, literalmente, pintava seus integrantes com pedra de carvão. E a cereja do bolo: os bailes noturnos do Iate Clube. O verdadeiro nirvana, onde até as brigas, que aconteciam todos os anos, eram aguardadas com ansiedade e, claro, faziam parte dos comentários posteriores ao evento – aliás, como todos os outros episódios vividos ali. Poder-se-ia dizer que o resto do ano passado na cidade grande só servia de espera para aqueles dias de pura magia. O carnaval era realmente o ápice das férias de verão e foi em um desses eventos que nossa história se passou.

As fantasias eram elaboradas com o primor e cuidado que só os grandes acontecimentos merecem. Todos os detalhes eram importantes, nada poderia destoar do contesto final. Cada um dos participantes da grande festa queria estar lindo e perfeito para ser admirado e, acima de tudo, para se divertir e brincar o carnaval até o sol raiar. Assim, com as preparações das brilhantes fantasias, os dias que antecediam o mais esperado evento de verão se passavam, até que, finalmente, chegava o grande e aguardado momento.

 

O sábado de carnaval, dia de calor intenso, começou na praia, com os moradores de verão sentados em roda nas areias brilhantes e grudentas, a conversar ansiosos pelo primeiro dia do baile. A expectativa pelas fantasias era grande, pois ninguém sabia o que o outro usaria até a hora de se encontrarem para irem juntos ao baile – alguns, no entanto, só se veriam no meio do salão. E, finalmente, a lua despontava no céu estrelado, indicando que era chegada a hora de correrem para casa e começarem a montagem de seus personagens festivos.

A neta de um dos veranistas mais antigos da cidade estava se arrumando no quarto da pequena casa de seus avós, que ficava na rua principal. Com as janelas abertas, enquanto se preparava, podia ver o movimento que crescia dos passantes animados e fantasiados. Ela estava aflita, pois a luz havia acabado. Como o único lampião da casa estava sendo usado pela mãe, na sala, resolveu acender uma vela e colocar na janela. O quarto, como a casa, era de tamanho reduzido, com um sofá-cama de casal, onde dormiam os pais, um beliche, para a jovem e a irmã caçula, e o majestoso vovô, um armário antigo de uma porta, dividido em cabideiro, que precisava de escada para manuseá-lo, dado a altura elevada, uma gaveta na parte de baixo e um suntuoso espelho de cristal na parte de fora da porta do velho e estimado móvel.

A visibilidade era bem reduzida, mas ela seguiu se arrumando apressadamente, pois via que o movimento na rua estava aumentado em direção ao Iate, o que indicava que o baile estava prestes a começar, e queria estar lá para a primeira música, o que já era uma tradição. Achou melhor colocar a fantasia antes de prosseguir com a maquiagem e se escondeu atrás da porta, dado que a janela do quarto estava aberta em busca de melhor iluminação, e colocou sua vestimenta. Não conseguiu se ver muito bem, mas ficou parada na frente do espelho do velho armário, tentando entender como se sentia. Usava um colã rosa, meia-arrastão preta, sapatilhas prateadas e, complementando o traje, um adorno de grandes penas rosas e brancas na cabeça. Achou-se um pavão, mas, como estava sem muito tempo para análises, resolveu voltar à etapa da maquiagem, a qual julgava ser tão importante quanto à roupa. Passou base, pó compacto, blush, tudo quase que no tato, pois a visão era reduzida pela falta de luz, que ainda não tinha voltado, mas seguia na arrumação, dando graças aos céus que o Iate Clube contava com auxílio de gerador, o que não colocaria a festa em risco.

Já estava quase pronta, com o delineador bem marcado, como gostava e como o fez com todo cuidado; só faltava passar a máscara dos cílios, e o batom. Estava entre um rosa bem forte, para seguir o padrão da roupa, e um prateado. Ao segurar os dois na mão e esticar o braço na direção da vela para poder ver melhor, desajeitou-se e os deixou caírem no chão. Abaixou-se em seguida para pegá-los e, ao se levantar, esbarrou com as penas na vela acesa que estava na janela. Como o quarto estava na penumbra, as chamas vindas das penas logo chamaram atenção de uma das pessoas que passavam pela rua, que deu um grito e apontou na direção da casa. A neta do velho veranista continuava dentro do quarto, entretida na dúvida de qual batom usar, e nada tinha percebido e levou alguns segundos para ver que os gritos de pânico e os acenos da passante eram em relação a ela. Quando se virou e viu sua imagem no espelho, literalmente, com labaredas em cima cabeça, começou a gritar, chorar e a pular, o que atraiu outras pessoas que passavam na rua e que logo formaram uma pequena aglomeração para ver o que estava acontecendo. A essa altura, a mãe, que estava na sala, já tinha entrado correndo no quarto e dado de cara com aquela cena bizarra. Rapidamente, deu um voo em direção as penas, jogando-as no chão e pisando em cima para apagar o fogo. Diante daquela atitude de sua progenitora, a menina parou de chorar e até de se mexer, ficando imóvel, e se estabeleceu um silêncio ensurdecedor.

Na rua, as pessoas se amontoavam à beira do pequeno muro que separava a casa da calçada, querendo saber o que estava realmente acontecendo. Cada um que passava, e via o volume de gente parada, se aproximava e queria informações sobre o ocorrido e as notícias variavam; já estavam na vertente de que a mãe havia colocado fogo na fantasia da filha para não a deixar ir ao baile por algum motivo ainda desconhecido. Enquanto isso, dentro do quarto, a filha, finalmente, saiu de seu estado de inércia, se ajoelhou, pegou as penas, ou o que restaram delas, viu que tinha um buraco no meio e voltou a gritar, dizendo que estava tudo acabado e que sua tão aguardada noite de carnaval terminara antes de começar. Gritava e chorava e a mãe, sem saber o que fazer, tentava ajeitar as penas na cabeça na filha, sem sucesso.

A multidão crescia do lado de fora e, a essa altura, a notícia que corria era que a filha queria fugir com um dos membros da banda que tocaria no baile do Iate Clube e mãe estava tentando segurá-la em casa e já havia até colocado fogo em sua fantasia, mas nada estava conseguindo fazê-la desistir. E, no desespero, a menina atirou as penas pela janela no meio da multidão, que se acotovelava para pegá-las. De repente, a luz voltou e uma forte chuva veio com ela, o que ajudou a dispersar as pessoas.

A mãe, achando que tudo já estava resolvido, que a filha logo se recuperaria do susto e, no dia seguinte, estaria pronta para mais um dia de carnaval, concluiu que o melhor seria realmente uma boa noite de sono. Para acalmar os ânimos, saiu do quarto e fechou a porta. Mas a menina não compactuava com os pensamentos da mãe e resolveu que sua primeira noite de carnaval não poderia acabar assim e rapidamente trocou de roupa. Colocou um short preto com a bainha desfiada e uma miniblusa com paetês prateados que havia usado no carnaval passado, ficando somente com as meias e sapatilhas do traje original. Saiu do quarto dizendo que não perderia seu baile dos sonhos por nada, que não seria uma pena em chamas que estragaria seu evento favorito e mais aguardado do ano. Nem os apelos da mãe sobre a forte chuva que caía foi capaz de detê-la. Simplesmente passou a mão no guarda-chuva, que estava do lado de fora, encostado em uma pequena cerca de madeira feita para amparar a lata de lixo, e saiu batendo o portão.

Chegando ao Iate, deixou o guarda-chuva em um canto na entrada reservado para ele e seguiu em direção ao salão lotado. Havia perdido a abertura do baile, uma tradição que adorava participar, mas não queria mais desperdiçar suas energias com nada além de seu tão esperado carnaval, já bastavam os acontecimentos ocorridos antes de sua chegada ali; agora só queria brincar até o sol raiar. Mas, quando se preparava para finalmente adentrar o salão, viu uma cena inusitada para seus olhos: uma pessoa dançando em cima de uma mesa, com umas penas na cabeça, com uma abertura no meio. Foi se aproximando e, quando chegou perto, viu que era o seu arranjo de penas queimadas que a mulher em cima daquela mesa estava usando e não teve dúvidas: puxou uma cadeira, subiu em cima da mesa e, de um só puxão, arrancou da cabeça da melindrosa que as usava, perguntando como ela se atrevia a utilizar algo que não lhe pertencia, e as colocou em sua própria cabeça. Desceu da mesa com muita calma, sendo seguida pelos olhares de todos que a observavam sem nada dizer, inclusive da mulher que teve da cabeça as penas arrancadas. Em seguida, entrou no meio do seu tão esperado baile de carnaval e dançou até o sol raiar.

 


terça-feira, 7 de maio de 2019

A decisão

Era uma manhã fria de chuva fina e vento cortante. Não podia mais esperar, tinha que resolver o que vinha adiando há meses. Morgana saiu da cama, olhou-se no espelho e entrou no chuveiro para um demorado banho quente. Secou os cabelos, vestiu-se, tomou um café preto e forte, comeu duas torradas com mel e seguiu para seu destino.

No metro pensava o que diria quando entrasse na sala que todos, certamente, já deveriam estar a sua espera. Conforme o trem avançava seu coração apertava e quando chegou sua parada suas pernas pareciam pesar uma tonelada, foi realmente difícil sair e subir as escadas da estação que a levaram para frente do grande edifício central da Avenida 7. Morgana ficou parada na frente do prédio olhando para cima como se quisesse ver a sala que ficava no vigésimo terceiro andar, depois de alguns segundos que pareceram eternos, entrou no prédio e seguiu para o elevador. Subiu cada andar com o coração aos saltos. Ao chegar se anunciou na recepção e foi conduzida a grande sala de reunião onde todos já a esperavam. Foi recebida pelo velho Alfredo que a conduziu a um lugar reservado para ela.   “- Bom dia Morgana, queira sentar-se aqui, por favor. Café, água, suco, o que prefere¿” Fez um aceno de negação com a cabeça sentou, no local indicado, e abriu a pasta que trazia colocando alguns papéis sobre a mesa e dando bom dia a todos disse que estava pronta para começar a reunião.

Os dias se passaram com Morgana cada vez mais certa de que sua decisão foi a melhor que poderia tomar, apesar de estar lhe custando várias noites em claro a pensar nas consequências que poderá ter, mas que apesar do risco não lhe restou outra saída.

Alfredo estava preocupado, pois já era a terceira vez que ligava para o celular de Morgana e não conseguia falar com ela. Não queria insistir, nem tão pouco parecer invasivo, mas o velho advogado realmente gostava dela, a acompanhou desde a morte dos pais, em um trágico acidente de carro há dez anos. Sabia que seu compromisso com ela se extinguiu após a reunião naquela manhã chuvosa e tensa há três semanas, mas mesmo assim sentia-se na obrigação de zelar por seu bem estar. Ele não concordou com a decisão tomada por Morgana, mas tinha que respeitar e fez tudo para viabilizar o caminho escolhido por sua cliente.

Morgana estava agora com vinte e cinco anos, dez anos já haviam se passado daquela fatídica noite em que recebeu a notícia do acidente de carro sofrido pelos pais, que os levou a morte. Após a perda dos pais teve que ir morar com Endora, sua tia, irmã de Lasneu, seu pai. Endora era uma mulher de princípios fortes e achava que como a sobrinha estava sob seus cuidados, tinha que seguir as mesmas regras de educação que ela havia tido e isso foi realmente duro para menina que estava acostumada a uma vida cercada de carinhos e agora só tinha regras e ordens a seguir. Foi nessa época que Alfredo conheceu Morgana, pois fazia parte das determinações deixadas pelo pai para o caso de sua falta, que ele, que era advogado da família, a acompanhasse e cuidasse de todos os bens deixados para ela até que completasse vinte e cinco anos, quando poderia gerir ela mesma o que era seu. O calvário vivido ao lado da tia durou três anos, quando essa, para alivio de Morgana faleceu. A partir de então passou a viver sozinha na casa dos pais, que estava fechada desde a morte deles e só poderia ser passada a ela, como todos os outros bens após ter completado vinte e cinco anos, mas devido à morte da tia, Alfredo conseguiu viabilizar os documentos para que tomasse posse da casa, embora tenha continuado a gerir seus bens, como determinação legal. Mas ele a supria de tudo que precisava e muitas vezes fazia vista grossa para os critérios de liberação de recursos que deveriam seguir algumas normas. Ela ficou lá até completar vinte e um anos, quando fechou a casa e quis ir morar em um pequeno apartamento no centro da cidade, o que também custou a Alfredo alguns arranjos para liberação de verba para o aluguel, mas que como tudo que ela pedia, conseguiu dar um jeito. Ela havia começado a estudar moda, depois de ter abandonado a faculdade de direito no terceiro ano. O curso era no centro da cidade e ficava muito insatisfeita por não poder ficar nas conversas de pós aula para não perder o ultimo horário do trem de volta para casa. Alfredo havia se tornando mais que um advogado, era como um amigo mais velho, um conselheiro, embora nunca tenha conseguido convencê-la a deixar de fazer o que queria como foi o caso de largar a faculdade de direito após já ter cursado três anos e de ser uma excelente aluna. Nenhum dos argumentos usado pelo velho e bom amigo, como ela o chamava, foi capaz de fazê-la desistir da ideia. Mas com o passar do tempo, embora não admitisse para ela, Alfredo achou que tinha feito a escolha certa, pois nunca a tinha visto tão feliz e realizada. Mas já não podia dizer o mesmo da última decisão que a viu tomar.

Agora já de posse total de seus bens, podia dar vazão a seu desejo de vender a casa dos pais, o que antes, mesmo com todos os arranjos de Alfredo para satisfazer seus anseios, não era possível. Apesar de ter essa vontade desde que saiu da casa, sentiu um vazio quando finalmente concretizou a venda. Ali havia vivido uma parte feliz de sua vida e ao mesmo tempo a mais triste, que fora a perda dos pais. Outro desejo realizado foi a compra de um grande apartamento, também no centro da cidade, mas agora com espaço para montar seu próprio atelier. Estava feliz com suas novas conquistas, mas ainda bem aflita com o rumo que sua vida estava tomando, mas mesmo assim certa do que queria. E assim seguiu para viver sua vida com todos os desafios e riscos que sua decisão poderia ter, mas também com a satisfação de ter feito o que achava que era necessário, embora sem nunca ter tido a certeza de ter feito a melhor escolha.

sábado, 4 de maio de 2019

A Loja de doces


Era início da primavera em Lisboa, as árvores cumprimentavam a todos com seus galhos repletos de verdes folhas, o que anunciava que o inverno havia se retirado de cena. Durante toda semana o sol iluminou e aqueceu a cidade, que estava carente de seu calor, fora um inverno rigoroso naquele ano. Porém naquela manhã de quarta feira o dia começou de baixo de uma chuva fina e fria, mas nada a ponto de fazer com que Isabel desistisse de satisfazer seu desejo de caminhar até a loja de doces que ficava no final da rua. A loja havia ficado fechada durante todo o inverno, o que a impediu de desfrutar de um dos poucos prazeres que se permitia na vida, croissant com cobertura de amêndoas, mel e canela.

O cheiro das guloseimas feitas ali era inebriante, da esquina já se conseguia sentir o perfume dos doces que atraiam fregueses de toda parte. Isabel atravessou a porta fazendo o sino tocar avisando de sua chegada, trazendo Madalena da cozinha, a dona da loja para receber uma de suas mais assíduas clientes. “-Bom dia menina, o que vai ser hoje¿ Aposto que o mesmo de sempre, quantos vai querer¿” Madalena era uma velha mal humorada, estava sempre com o rosto e mãos engordurados, que limpava a todo tempo em um grande avental xadrez que trazia amarrado a cintura. Conhecia todos seus clientes pelo nome, sabia o gosto e preferência de cada um apesar de nunca travar com eles nenhum tipo de dialogo, a não ser um curto e formal bom dia ou boa tarde. Isabel ignorava a falta de simpatia e disposição para conversa de Madalena e sempre perguntava como estava passando, mesmo que ela não respondesse como fazia habitualmente e naquele dia não foi diferente. “-Sim Dona Madalena, o de sempre, meu delicioso croissant. Três... não, quatro, pode me dar um para comer agora e os outros para levar, por favor. Quase morri de tanta falta deles, todo o inverno ... ai nossa.” Isabel, como sempre tentava uma conversa com Madalena que a ignorava como fazia com todos. A velha doceira atendeu ao pedido, recebeu pagamento e quando já ia se retirar do balcão para retornar a cozinha foi impedida pela chegada de mais um cliente que entrou na loja esbaforido com guarda chuvas pingando deixando o chão todo respingado. “-Bom dia, por favor, aqui é a loja da Dona Madalena¿ Recebi a indicação de aqui são feitos os melhores croissants de toda Lisboa.” Isabel, que já estava de saída, parou e se voltou para o homem respondendo que com certeza eram os melhores da região e seguiu para casa para preparar um quente e fumegante café para tomar com suas delícias recém adquiridas. “-Diga lá quantos vai querer, são 1,20 cada.” Perguntou Madalena, do alto de seu habitual mau humor e falta de cordialidade, ao homem que permanecia parado na porta perdido entre a gentileza de Isabel, a rispidez da dona da loja e o delicioso aroma que o fez despertar e fazer seu pedido e sair em retirada. Eram assim os dias na loja de doces que encantavam a todos pelo seu sabor e aroma deliciosos, mas que tinham que enfrentar o mau humor de Madalena para ter direito as maravilhas que preparava. Sua falta de trato com os clientes já era quase tão conhecida quanto seus doces e em nada atrapalhava suas vendas, muito pelo contrario, já havia virado folclore na região, a velha amarga que vendia doces.

Isabel chegou em casa, fez um bule de café, sentou a mesa e saboreou cada pedacinho de sua riqueza, a cada mordida vinham-lhe a cabeça momentos agradáveis que já vivera. Era realmente um manjar dos Deuses, pensava como um simples doce podia trazer-lhe tão agradável sensação, já havia comido outros croissants muito saborosos, mas nada comparado aquele, parecia mesmo especial, o melhor da região, só não entendia como uma coisa tão saborosa podia ser feita por uma pessoa tão seca e amarga como Dona Madalena.

E os dias se passaram com a mesmo rotina, Isabel ia à loja todas as manhãs, sem sucesso falava com Dona Madalena, pagava pelos croissants e saia. Como ela, várias pessoas iam ali à busca da iguaria de cobertura de amêndoas, canela e mel, mas ninguém, além de Isabel, se preocupava em querer saber como uma mulher sem amor no coração, como aparentava ser Madalena, era capaz de fazer tal delícia.

Um dia ao sair da loja de doces, Isabel não se conteve e voltou da porta e bateu o sino, fazendo Madalena, que já estava no caminho de volta para cozinha, girar nos calcanhares para atender seu chamado, o que a deixou bem irritada, o que já era de se esperar, quando viu que era Isabel e não um novo cliente. “- Ora menina, o que queres, já não lhe atendi, esqueceu alguma coisa¿ Está a me fazer perder tempo, pois saibais que tenho muito o que...”  Para surpresa da velha, Isabel a interrompeu, a deixando com a fala no ar. De forma bem calma, como era de seu perfil, a menina a questionou. ”- Por que a senhora está sempre de cara amarrada e trata mal seus clientes¿ Sabe Dona Madalena, eu realmente não entendo como uma pessoa como a senhora, que parece estar de mal com a vida consegue fazer coisas tão deliciosas. Eu realmente não entendo. A senhora sabia que vêm pessoas de toda Lisboa para comprar seus doces¿ Acho mesmo que ninguém se importa, mas eu acho que deve ter alguma parte boa ai nesse seu coração que a senhora faz questão de esconder e deve ser essa parte que coloca nos doces.” Isabel saiu pela porta e se jogou no ar daquela manhã fresca de primavera de braços e peitos abertos  sentindo-se como tirado um peso dos ombros, já Madalena ficou parada no balcão da loja de boca entreaberta em um sentimento misto de raiva e espanto.


No dia seguinte, uma manhã clara e ensolarada, Isabel adentrou a loja de doces como era de costume e após o sino ter anunciado sua entrada Madalena veio da cozinha e quando deu de cara com a menina ficou surpresa, pois não esperava vê-la após o acontecido no dia anterior, mas fez um grande esforço para conter seu espanto o que foi inútil. Isabel fez questão de demonstrar nada ter percebido. “-Oh... o que vai ser hoje¿ O de sempre¿ Quantos¿ Algum para comer agora¿” A velha doceira parecia realmente estar nervosa, fazia várias perguntas e não encarava o olhar de Isabel que permanecia a fingir nada perceber e fez seu pedido habitual e um incomum, causando mais constrangimento a dona da loja que ansiava por vê-la sair. “-Ah... então além dos croissants hoje vou querer um mingau de sagu, para consumir aqui mesmo, bem quente e doce, por favor.” Isabel fez o pedido e sentou em uma mesa no fundo do salão e pegou o celular, mas apenas fingia olhar o aparelho enquanto observa Madalena suspirando e virando com tamanha rapidez em direção a cozinha que o chão de madeira estremeceu com seus pesados passos. Após cerca de 20 minutos um cheiro bom e doce banhava toda a loja e foi colocado na frente de Isabel um prato fundo de mingau de sagu. “-Veja se está a seu gosto, bem quente e doce como pediste. Não sabia que gostavas de mingau menina. Os croissants mais o mingau são 4,40, quando terminar podes deixar em cima da mesa, caso não precises de troco, ou me chamar, como queiras, bom apetite.” Agora o espanto era de Isabel, pois nunca, durante todos aqueles anos que frequentava a loja, tinha visto a velha doceira exercer nenhum tipo de dialogo com seus clientes, muito menos desejar-lhes bom apetite, realmente algo parecia ter acontecido. Comeu seu mingau, que como tudo ali era divino, deixou o dinheiro na mesa e saiu sem deixar aviso. Do canto da porta da cozinha a velha doceira observava sua cliente e pensava como uma rapariga magrela e desajeitada poderia ter lhe falado coisas tão desaforadas e ela não tomou nenhuma atitude e ainda a recebia em sua loja e a servia com o que tinha de melhor. 

quinta-feira, 23 de junho de 2016

O bolo

A semana começou com a missa na segunda feira. Pois o pai não admitia que as datas comemorativas da família passassem em branco, muito menos aquela. A festa seria no sábado, quanto a isso ele não via problema, mas a missa de quinze anos de Sofia, a filha primogênita, tinha que ser no dia do aniversário. A celebração que além de ser em dia de semana foi pela manhã, não pôde contar com a presença da maioria dos convidados, mas o pai, Alfredo, não se comovia:“- Comemoração de aniversário é no dia”, dizia ele em tom certeiro. A família também não se abalava, pois aquilo já era um hábito antigo que não causava nenhum tipo de estresse, muito pelo contrario, por muitas das vezes gerava mais de um festejo para o mesmo evento, como seria o caso daquele aniversário. Após a missa Sofia se despediu dos poucos que compareceram e foi almoçar na companhia dos pais e avos em um restaurante perto da igreja. O almoço foi seguido do tradicional canto em volta de um pequeno bolo dos parabéns com gritinhos de saúde a aniversariante, exigência do pai que fazia questão, o que embora não agradasse muito a filha, que morria de vergonha daquelas manifestações em publico, sabia que de nada adiantaria protestar e fingia que gostava para seu desconforto acabar mais rápido. Após a família terminar de comer o bolo e a mãe servir alguns pedaços para os poucos clientes que estavam no restaurante e participaram dos parabéns, fazendo Sofia corar ainda mais de constrangimento, o pai tirou do bolso do paletó do terno, feito especialmente para data, uma caixinha de veludo e entregou a filha, que se surpreendeu quando abriu e viu que tinha dentro um anel de ouro com um pequeno brilhante no centro e todos bateram palmas, chamando mais uma vez a atenção dos outros clientes que acompanharam os aplausos, mas desta vez Sofia não pareceu ligar muito para o que ocorria a sua volta, estava emocionada, levantou e foi dar um forte abraço no pai e em seguida na mãe e assim foi o dia do aniversário, feliz e em família como era de costume.  A semana seguiu nos preparativos da grande festa do sábado, que teria a presença de todos os amigos e familiares. A aniversariante não cabia em si tamanha era a sua ansiedade, contava os dias para chegada do evento que estava sendo preparado com muito carinho pela mãe, Eleonora, que havia se encarregado pessoalmente pela execução dos quitutes e do bolo, como fazia todos os anos e naquele não poderia ser diferente, estava empenhadíssima para que tudo fosse perfeito, afinal era uma data especial, quinze anos de sua filha mais velha. Na véspera do grande dia a mãe amanheceu na cozinha. Começou pelo bolo, às oito horas da manhã já havia batido e assado a massa e colocado para esfriar para ser regada posteriormente com a calda de doce de pêssego em lata.  Eram vários tabuleiros de diferentes tamanhos, o objetivo era montar um castelo com cascata de frutas frescas, seria uma tarefa difícil, nunca havia feito um bolo com tamanha complexidade, mas estava confiante e animada que daria certo. Para o recheio fez uma mistura de ameixas, doce de leite e nozes picadas, uma verdadeira delicia. Nesse maio tempo... o marido chega do mercado com as sacolas apinhadas dos ingredientes que estavam faltando para o preparo das guloseimas da festa e começa a esvazia-las e colocar as compras em cima da mesa e a apreciar, com orgulho, a mulher em atividade, mas a mesma logo o conduz para fora da cozinha, uma vez que não queria ter sua atenção desvirtuada para não comprometer a elaboração de sua obra prima. Alfredo então vai ler o jornal na sala e deixa a mulher com suas atividades na cozinha. Eleonora volta ao trabalho desenformando os tabuleiros, que já estavam frios, em uma tabua posta sobre a mesa com todo cuidado, iniciando assim a montagem do bolo. Seu coração batia rápido em uma combinação de ansiedade e felicidade, mas também por sua ousadia em fazer algo tão arriscado para o aniversário da filha, mas ao mesmo tempo sentia-se segura para continuar na tarefa. Então começou a abrir as latas de doce de pêssego e a molhar o bolo com a calda seguindo com a colocação do recheio e desenformando outro tabuleiro e assim por diante e quando já estava com o que deveria ser à base do castelo praticamente montada, viu que havia, inadvertidamente, entre uma lata e outra do doce de pêssego, aberto algumas de salsicha postas na mesa pelo marido, que eram para o cachorro quente, que se misturaram as do doce. Quando Eleonora se dá conta do engano começa a extrair, de maneira frenética, os pedaços onde supunha que tinha derramado o caldo da salsicha, ela gritava loucamente tamanho era o seu desespero em imaginar que poderia arruinar o bolo, achava que se demorasse a tirar a parte atingida o gosto iria entranhar de tal forma que não teria mais jeito e é nesse exato momento, que a avó da aniversariante, D. Clotilde, chega para saber como estavam os preparativos da festa. Era uma senhora idosa de seus oitenta e poucos anos, se locomovia com dificuldade com auxilio de uma bengala dado a artrose avançada nas duas pernas. Ela entrou chamando pela filha e logo percebeu que algo estava errado devido aos gritos que vinham da parte de trás da casa e seguiu aflita para ver o que está acontecendo e quando chegou à cozinha, onde a essa altura já estava lá também o genro que foi atraído pelos brados da mulher, dá de cara com aquela cena e como que tomada por uma força, que não soube explicar depois de aonde veio, largou a bengala e agarrou os braços da filha, que a todo custo tentava se desvencilhar. D. Clotilde sacudia Eleonora com tamanha avidez, inconcebível para seu estado físico, e dizia que a filha estava possuída por maus espíritos e ordenava com gritos de guerra para os mesmo se afastarem e começou a rezar e fez sinal para que o genro a ajudasse mandando-o trazer um copo de água com sal, ele sem protestar obedeceu, estava assustado demais para questionar qualquer coisa. As duas ficaram ali travando uma luta e Alfredo, totalmente apavorado com estado da mulher e, por conseguinte com o de D. Clotilde e ao mesmo tempo com medo de ser também possuído pelos maus espíritos, que a sogra insistia em querer expulsar, ali permaneceu inerte e sem coragem de abrir os olhos e dando graças a Deus pela filha estar na escola e não em casa naquele momento. De vez enquanto até arriscava abrir um dos olhos para ver como estavam as coisas, mas fechava em seguida com todas as forças que lhe restavam tamanho era seu pânico. Eleonora tentava apontar para o bolo, gritando que tinha que salvá-lo, mas D. Clodite não entendia os apelos da filha e a segurava pelos braços com vigor, molhava-a com a água com sal e a chamava pelo nome achando que assim a traria de volta ao seu estado normal quando de repente se deu conta de que a filha estava se referindo ao bolo e parou por um minuto num misto de descoberta e espanto: - O bolo?! É ele?! Eleonora se sentindo aliviada por finalmente ter conseguido se fazer entender, respondeu afirmativamente apontando para o bolo repetindo “sim” aos berros por diversas vezes. D. Clotilde então largou a filha no chão, não se sabe como, mas ela estava com uma força extraordinária, mirou na tabua, que já estava com a base do castelo montada, e em um só golpe a puxou e em seguida pegou as massas assadas que ainda estavam nos tabuleiros e fez uma pequena montanha no chão da cozinha a qual pisoteou de maneira inacreditável, para alguém que como ela tinha artrose nas duas pernas o que lhe limitava os movimentos, sob os gritos que o mesmo estava enfeitiçado. Eleonora se agarrou aos pés da mãe, tentou impedi-la, mas de nada adiantou, ela só parou quando apenas restaram farelos espalhados por todo o chão. D. Clotilde sentindo-se plenamente satisfeita como uma verdadeira heroína que acabara de salvar a filha sentou em um banquinho no canto da cozinha e disse:      - Pronto filha! Tudo resolvido! Nossa, temos que mandar benzer essa casa antes da festa, mas deixa comigo, mamãe resolve. Alfredo, que finalmente conseguiu abrir os olhos e sair do lugar de onde estava imóvel, foi até a mulher tentar ajudá-la a se levantar, mas Eleonora sem forças para mais nada recusou o auxílio do marido e permaneceu no chão observando a mãe que falava sem parar dos maus espíritos que invadiram o bolo de quinze anos da neta e de como ela havia resolvido a situação. D. Clotilde seguindo em seu estado de graça de semideusa dirigi-se a ajudante da casa Gertrudes, que acabara de chegar para o trabalho e olhava espantada para tudo aquilo sem entender o que estava acontecendo, e pede para que lhe preparasse um café bem forte e quente com torradas, manteiga, queijo e geleia, dizendo que já estava ali há tempos e ninguém havia se lembrado de lhe oferecer nada para comer.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Festa de Casamento

Sofia era professora para satisfação do pai, Sr. Ernesto, que criou os filhos sozinho depois que ficou viúvo. Além de Sofia, tinha Herculano que era marceneiro, filho mais velho já casado.

Sofia já tinha passado da idade, dita pelas moças da época, de casar. Até mesmo o pai a incentivava a sair na esperança de que conhecesse alguém e quem sabe conseguisse um casamento, mas a moça não se abalava, dizia que quando chegasse a hora acharia seu príncipe.

Sofia e Matilde, mulher de Herculano e também professora, eram amigas e lecionavam na mesma escola. As duas sempre voltavam juntas para casa depois das aulas e paravam em uma lanchonete que ficava no caminho e foi em um desses dias que conheceram Bernardo, que estava no balcão tomando um café e logo foi atraído pela mesa das moças a sua frente. Sofia não reparou nada e só se deu conta quando Matilde, que logo notou o olhar para a cunhada, lhe apertou o braço. Bernardo fez um aceno perguntando se poderia se juntar a elas e antes que Sofia pudesse dizer alguma coisa, Matilde fez sinal afirmativo e no minuto seguinte estavam os três a conversar. Bernardo era medico e atendia em um consultório nas proximidades. Os encontros passaram a ser regulares e aos poucos Matilde, que já havia notado o interesse de um pelo outro, mesmo sob os protestos da cunhada, passou a não ir mais. Logo Sofia ficou a vontade, estava realmente interessada em Bernardo.

Após seis meses, Bernardo achou que já era hora de conhecer a família de Sofia e oficializar o namoro. Sofia não havia falado nada em casa sobre Bernardo, ao pai dizia que estava dando mais aulas e por isso chegando mais tarde. Sr. Ernesto por sua vez de nada desconfiou só Matilde sabia a verdade e torcia muito pela felicidade da cunhada de quem gostava como irmã e a seu pedido nem ao marido contou sobre o namoro. Sofia embora nervosa, mas certa de que era a melhor coisa a fazer já que estava apaixonada e confiante de que havia encontrado o homem de sua vida apresentou o namorado ao pai, que de inicio se mostrou contrariado por não ter sabido de nada antes, mas depois que conheceu Bernardo e o mesmo fez o pedido de casamento, o que foi inesperado até para Sofia que não imaginava tal surpresa, ficou radiante de ver que a filha finalmente tinha conseguido um marido. A notícia logo se espalhou pelo bairro e toda a vizinhança apareceu para dar os parabéns e se oferecer para contribuir com a festa de casamento. Sofia era muito querida e seu casamento já havia sido até motivo de promessa das moradoras mais antigas que a viram nascer e não se conformavam de moça tão bonita e prendada ainda solteira e por mais que ela dissesse que não queria nada, as mulheres insistiram tanto que a deixaram comovida e acabou aceitando.

As vizinhas pareciam formigas trabalhadeiras empenhadas com cada detalhe da festa nos meses que seguiram para deixar tudo impecável para o grande dia. O bolo ficou a cargo de Matilde, que além de professora era uma boleira de primeira e fez questão de fazer o do casamento da cunhada e melhor amiga. O pai não abriu mão de pagar o vestido da filha e o irmão contribuiu, junto com os homens do bairro, com as bebidas. O local escolhido para festa foi o salão da associação dos moradores. Sofia concordou em não se envolver nos preparativos e só cuidaria dela mesma. Matilde testou várias receitas para o bolo e viu inúmeras revistas sobre adornos, queria que fosse perfeito. O assunto era recorrente no bairro, não tinha quem não comentasse sobre o bolo. A curiosidade era imensa sobre a peça central da festa e para ela foi reservado lugar de destaque no centro do salão, Herculano fez uma mesa especial com pés altos para que ficasse em evidencia. Por mais que as mulheres insistissem, Matilde não dava nenhum detalhe, queria causar impacto.


Enfim chegou o dia do casamento, os homens se encarregaram da arrumação do salão e depois de tudo pronto Herculano foi buscar o bolo. Quando chegou em casa, estava tão curioso, pois nem ele ainda tinha visto o bolo, que nem notou o desanimo de Matilde que estava sentada na sala, lhe deu um beijo e foi direto para cozinha apanhar o bolo e quando o viu exclamou: - Nossa! Está lindo! Falou com empolgação e foi interrompido pela mulher que aos gritos correu até ele: - Está grande demais! Não passa na porta, não sei o que fazer! Matilde chorava e o marido tentou de todas as formas, mas não tinha como, o bolo não passava nas portas, nem nas janelas, nem em pé nem de lado, de jeito nenhum, era realmente grande demais. Matilde estava arrasada e resolveu ir falar com as outras mulheres que ficaram enlouquecidas e a que parecia a líder delas logo achou a solução:     - Vamos fazer a festa na sua casa, sem bolo é que não dá para ficar! Matilde argumentou que a casa era pequena, que não ia caber todo mundo, mas de nada adiantou e foi um corre, corre para transferir tudo do salão, ou melhor, quase tudo para casa de Matilde. Tinha cadeira até na calçada, o cartaz da entrada com o nome dos noivos ficou em cima da caixa d´água e só era visto da rua, as bebidas dentro da banheira e os doces e salgados espalhados pela casa em cima dos moveis. Mas o pior mesmo foi quando os convidados começaram chegar e só queriam saber de ver o bendito bolo, assunto mais comentado nos últimos meses e a curiosidade era imensa, não teve quem não pronunciasse um vigoroso “Oh!” quando davam de cara com a obra prima de Matilde que já não sabia mais como fazer com aquela loucura de gente se apertando na sua cozinha minúscula, mas que era o local que todos queriam ficar, pois era lá que o bolo estava. Nem a noiva teve tanta atenção, cada um que chegava dava os parabéns e corria para apreciar o foco da festa, o bolo. E assim foi até o dia raiar naquele empurra, empurra na casa lotada, musica alta, uma festa para ficar na historia do bairro e no coração de Sofia, que apesar de perder em atenção para o bolo, era uma felicidade só. E assim foram felizes para sempre!